Devidamente autorizada pelo Prof. Dr. José Jackson Coelho Sampaio, que gentilmente me enviou, por email, cópia da palestra por ele proferida por ocasião da abertura da Reunião do GNDH em João Pessoa, no dia 14 de abril de 2011, publico, abaixo, integralmente, a referida palestra.
Como já disse anteriormente, poucas vezes ouvi ou li palavras tão apropriadas para um tema tão desafiador.
Deleitem-se:
USO, ABUSO E DEPENDÊNCIA DE DROGAS LÍCITAS E ILÍCITAS: UM GRAVE PROBLEMA DE EDUCAÇÃO, SAÚDE E SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO.
Prof. Dr. José Jackson Coelho Sampaio
1. Três Histórias Exemplares.
O Vinho no Mundo Antigo e na Idade Média:
Nas cavernas pré-históricas, no degelo das primaveras, quanta fruta ou grão apodreceu e fermentou em pequenas poças no fundo das cavernas, mas, antes mesmo que a água fluísse pelos riachos, após serem quebradas as crostas de gelo, alguém provou o líquido das poças e, mesmo repugnando o gosto, apaziguou a sede, sentiu estranha alegria, uma tontura exaltada, luzes na escuridão, e pode ter associado a experiência com o que fora bebido.
O fenômeno e a experiência dele decorrente eram ocasionais e não necessariamente associáveis; uns não gostaram; outros gostaram, mas logo esqueceram; poucos ficaram atrás de novas provas e, obcecados, foram surpreendidos pelos predadores; além disso, por milênios, ninguém conseguiu reproduzir, artificial e sistematicamente, o fenômeno.
Nestes milênios descobriu-se a vinha, a possibilidade de plantar vinha, a técnica para tirar vinho da vinha e até São Martinho, quase 400 anos depois de Cristo, contribuiu para o processo ao perceber como a vinha melhorava depois de ser mastigada, espontaneamente podada, pelo seu burro de estimação.
Nos mosteiros e nas famílias, em fainas diárias e submissas aos caprichos de ventos, chuvas e mudanças do clima, com a técnica dos barris de uvas pisadas, produzia-se vinho para o consumo dos senhores da terra, excedente para um pequeno comércio e outro para uso do próprio produtor.
A liberdade dos nobres para ócio e hedonismo os predispunha à repetição, daí o risco de embriaguez e vício. Aos camponeses sobrava a menor quantidade, a pior qualidade e a proibição do prazer. A técnica disponível resultava em produção restrita e sem circulação significativa fora de cada gleba. O forte sistema de crenças gerava proibição e culpa lancinante pelo uso.
Entre os ricos, pela facilidade do excesso, e entre os pobres, pela sedação da vida árdua e culpada, surgem os bêbados na paisagem social da Idade Média, herdeiros de Noé, concebidos como vítimas das fraquezas morais e do assédio dos demônios, incompetentes para restringir o uso do vinho aos dias de festa e à transubstanciação das missas.
A Cachaça no Brasil Colônia:
Em cada lugar, de acordo com as disponibilidades e a abundância das fontes alimentares e energéticas, também de acordo com as tecnologias dominadas, saímos da fermentação para a destilação e das técnicas artesanais para as mecânicas, gerando cada vez mais excedentes, para o uso e as trocas comerciais, interregionais e internacionais.
No centro do capitalismo mercantil colonial, nasce o Brasil em berço de madeira e de cana de açúcar, com as potências européias brigando por posse de terra, conquista de espíritos em nome da glória de suas crenças, tinta destinada à indústria têxtil e açúcar para universalizar novo padrão de gosto.
Saiam armas da Europa para a África, onde eram vendidas em troca de escravos. Saiam escravos da África para o Brasil, onde eram vendidos em troca de açúcar. Então, saia açúcar do Brasil para a mesa européia, finalizando uma acumulação lucrativa que alimentava o hedonismo das cortes, nova escala de concentração de poder e novas armas para que a África sangrasse.
No canavial brasileiro, para o comércio rural-urbano e interregional, ficava a rapadura e a cachaça. A cachaça, fonte calórica vazia, oferecia ao homem a impressão de estar sem fome, a proteção contra o frio das madrugadas, a força para enfrentar o violento trabalho dos dias e, finalmente, o colapso noturno de um sono pesado.
A tecnologia industrial produz volumosos excedentes, que precisam ser transformados em lucro, portanto consumidos. O produto é fantástico, pois verdadeiramente multiuso - dá lucro e poder aos proprietários, e nutre, protege, fortalece e força o sono dos trabalhadores, depois do eito. Assim, cria-se uma ciranda de justificativas, de pretextos e de desculpas: beber cachaça fica sinônimo de ser adulto, de ser viril e de ter corpo fechado contra as intempéries e as doenças, pois para tudo a cachaça há de servir.
A tecnologia é industrial, a população ampliou, a circulação dos produtos tornou-se intercontinental, o consumo massificou-se para dar conta da nova escala de excedentes e os bêbados, lixos humanos, passam a ser multidão. Então o Estado, iniciando políticas sociais públicas, usa a bebedeira geral como pretexto para oferecer ou recusar direitos, ambiguamente.
O Crack das Vastas Periferias:
Quanto mais desenvolvimento político e econômico, social e técnico, mesmo numa cultura de exploração do trabalho de muitos para o usofruto de poucos, mais se necessita de tempo de estudo para o domínio das tecnologias.
Se o século XIX exigiu infância e o século XX exigiu infância e adolescência, o século XXI exigirá infância, adolescência e adulto jovem para o domínio de profissões, estratégias de autocuidado para vida longeva, estratégias sociais para o domínio da experiência humana no mundo e uma cidadania ética em meio às tensões entre prazer, riqueza e poder.
As novas e ampliadas elites exigem muito mais tempo para a formação, o trabalho e o consumo, esta dimensão produtiva que, agora, dá sentido a todo o processo produtivo (produção > distribuição > consumo) e serve de porta de entrada à cidadania contemporânea, reformulando até o papel dos excluídos.
Superando certa utopia de união dos trabalhadores, percebe-se uma reconfiguração das lutas político-econômicas na sociedade, com a aliança de patrões e empregados de um setor econômico disputando renda e poder com a mesma aliança em outro setor. Também se percebe a redistribuição global das antigas classes, agora opondo países: agrários, industriais e financeiros, centrais e periféricos – daí a concentração do comportamento elite em uns, do servil em outros e do puritano-produtivista em mais outros.
Os norte-americanos descobriram, então, depois do baby boom ao fim da 2ª guerra mundial, seus jovens, tardo-adolescentes, abastados e individualistas, consumindo a heroína, a cocaína e a maconha produzidas na periferia pouco virtuosa do mundo.
E, evidentemente, os jovens gringos não seriam responsáveis pelo próprio comportamento, nem a sociedade norte-americana, mas, sim, asiáticos e sul-americanos inescrupulosos, violadores da consciência dos meninos ingênuos. Certos de serem o novo povo eleito do destino manifesto, os Estados Unidos arregimentam vastos poderes bélicos para intervenções na Turquia, Afeganistão e Colômbia, por exemplo, obtendo nestes paises, como conseqüência, o surgimento de negócios organizados em escala global, apoiados em forças paramilitares, além de despertarem o empreendedorismo anglo-saxão para um novo cluster de negócios: as drogas sintéticas, geradas em laboratórios, frutos do trabalho de pesquisa de cientistas.
Se a humanidade gosta de droga, o comportamento hedonista se tornou massificado, a lógica do consumo foi expandida e tornou-se produtora de sentido, a competência técnica multiplica por zilhões a capacidade de produzir qualquer mercadoria, a escala de lucro tornou-se estratosférica, os novos jovens têm hábitos urbanos e afeitos a produtos industrial-sintéticos e lhes foi dito que remédios os salvam da dor, da infelicidade e da morte, então, destinam-se ao LSD da Era de Aquarius, ao ecstasy das baladas, à cocaína branca dos salões, sobrando para as periferias o barato do crack barato.
Na economia da dependência química, os empresários marginais, como máfias, dividem territórios. Assim, áreas de maior poder aquisitivo de cidades e cidades inteiras mais ricas, como São Paulo, podem ser bloqueadas para a cocaína, por exemplo, e outras regiões tornam-se pasta de crack, com seu cortejo de zumbis, pelas calçadas.
Esses marginalizados, depois de alimentarem a ciência, a indústria e o comércio das drogas, devem alimentar novo circuito de preconceitos – pois fracassados, fracos, degenerados – e o comércio milionário de um novo tipo de asilo. E todas as ações são defendidas não pelos eventuais próprios méritos, mas pelo efeito higiênico e estético de “tirarem drogados das ruas”.
2. Processo biológico-psicológico-social do uso e do abuso de drogas e da dependência química.
O uso e o abuso de drogas e a dependência química são fenômenos humanos, mutáveis com a história humana. As teorias que pretendem dar conta da compreensão desses fenômenos, tanto quanto as práticas de prevenção, de mitigação, de tratamento e de recuperação, também são mutáveis com a história humana.
A essa altura do nosso desenvolvimento, com as experiências de Neurologia, Psicopatologia, Psiquiatria, Psicologia e Psicanálise, o que podemos dizer sobre tais fenômenos, além de identificá-los como constituintes de um processo dinâmico, interdependente, radicalmente humano?
E como sempre é necessário algum passeio por palavras, expressões e o estatuto social de suas circulações. O modelo biomédico prefere usar “substância psicoativa”, incluindo no tecnoleto uma assepsia e uma impessoalidade da expressão. A palavra “droga” tem forte trajetória histórica, abarca desde o chocolate ao haxixe, e povoa o senso comum com sua carga de aversão moral. A tríade “tóxico”, “narcótico” e “entorpecente”, carregada de opróbrio, é a predileta do jornalismo policial, das delegacias de polícia e do meio jurídico. Isto é, fatual e simbolicamente, “substância”, “droga” e “tóxico” dizem coisas diferentes.
Pelos jornais, pelos dicionários e pela literatura científica também podemos rastrear “vício”, “dependência”, “adicção”. Se “vício” revoluteia por senso comum, mídia de massa, delegacias de polícia, com forte carga de rejeição e condenação moral; “dependência” é nome técnico, biomédico, restrito aos processos e efeitos biológicos da relação de usuários com objetos concretos; e “adicção” agrega estatuto filosófico e psicanalítico para designar todos os processos e efeitos psicossociais da relação de usuários com objetos concretos e simbólicos, ampliando o conceito de “dependência psicológica”.
Porém, com base em autores como Alfredo Moffatt (“Teoria Temporal do Psiquismo”), Antônio Lancetti (“Clínica Peripatética”), Claude Olievenstein (“Não Existem Drogados Felizes”), Eduardo Kalina (“Drogadicção”), Umberto Galimberti (“Os Mitos do Nosso Tempo”), disponho-me agora a identificar três dimensões da problemática que envolve o consumo de substância/droga/tóxico: a) psicodinâmica do uso, do abuso e da dependência; b) natureza e escolha do objeto; e c) consequências da exposição ao objeto.
O ser humano constitui sistema aberto, que introjeta alimentos e estímulos, elabora internamente estes alimentos e estímulos, usa alguns resultados desta elaboração para sua sobrevivência física e psicossocial, por fim despreza no meio resíduos supostamente inúteis do processo de elaboração e uso.
Esse esquema, grosso modo, dá conta da ingesta de pão, a produção de energia para o trabalho e o lançamento de dejetos em vaso sanitário, tanto quanto dá conta da acolhida infantil do amor materno, a disponibilidade para o comportamento afetivo e solidário na vida adulta e a projeção neurótica da função materna nas mulheres pelas quais um homem se apaixona.
Como é esquema e é grosso modo, não tem missão explicativa de cada caso concreto, singular, servindo apenas para afirmarmos a tese do sistema aberto - in put, through put, out put – escancarado ao mundo, carente do mundo. Somos, portanto, movidos pelo que captamos e pelo que somos expostos, querendo ou não, daí podermos usar, perdermos limites, abusar e nos tornar dependentes, biológica, psicológica ou biopsicologicamente de, literalmente, qualquer coisa.
Os gregos clássicos desenvolveram o conceito de Pharmakon, no qual toda substância é veneno e remédio, dependendo da dose e da condição do medicado. Por isso, como diz a canção popular, o que dá para rir, dá para chorar, questão só de peso e de medida, questão só de tempo e de lugar.
A Neurologia moderna nos fala dos diques de liberação e de retenção que se organizam no sistema nervoso central, provendo centros de saciedade específicos e inespecíficos. Temos sede, bebemos e paramos de beber pelo reconhecimento de que o equilíbrio hídrico foi restabelecido no organismo. Temos fome, comemos e uma sensação difusa de satisfação nos informa que a fome foi superada. E assim por diante. Sem estes dispositivos, seríamos peneira de palha, cano sem tampa, filtro inútil.
Mas, o que caracteriza esses alimentos e estímulos? Aqui nos deparamos com a dimensão da natureza do objeto e a construção histórica das escolhas. As dialéticas, aristotélica, hegeliana ou marxista, nos dizem da relação de movimento e contradição entre casualidade e necessidade. Na vida prática não ocorre o totalmente casual e o totalmente necessário, portanto, no ser humano, em quem o social submete e determina o orgânico e o orgânico submete e determina o inorgânico, não ocorrer o totalmente psicológico e o totalmente biológico.
Deste modo, o objeto (alimento, estímulo) pode ser dominantemente concreto (chocolate, cachaça, tabaco, açúcar, cocaína, cirurgias estéticas, moderadores de apetite, diazepam etc) ou dominantemente simbólico (trabalho, sexo, exercício físico, videogame, ideologia política, religião etc). Temos legião de chocólatras, alcoólatras, tabagistas, cocainômanos, workaholics, sexólatras, fanáticos religiosos e legião de novos abusos e dependências em busca de nome, rótulo, explicação ou estigma.
A partir do concreto, sobre base fisiológica, adaptações, defesas superativas e defesas frustradas são convocadas. A partir do simbólico, sobre base psicológica, depósitos de substâncias, alterações de sítios de ocupação ou metabolismos incompletos são convocados. E tudo com momentos de relação entre história individual e história coletiva que determinam as narrativas plenas de significados atribuídos às nossas experiências, por nós mesmos, por nossas famílias, pelos colegas da escola ou do trabalho, pelas autoridades, pela mídia. Tais narrativas nos conformam.
Focados nos ideais de consumo; formulando prazer, fama e juventude como ideais de ego; propondo coisas (drágeas, injeções, cirurgias, propriedades, dinheiro etc) como solução universal para desconfortos, frustrações, infelicidades, dores e o peso do inelutável passar do tempo rumo à morte; chegamos à composição de um perfeito modelo químico de vida. Para o bem ou para o mal, será na química que nos esbaldaremos. Se doril faz a dorzinha sumir, para uma dor maior ou o medo de ter dor ou o medo de ter medo, qual doril tomaremos?
Para camponeses pobres e analfabetos do altiplano boliviano, vivendo a experiência humana no trabalho árduo, de sol nascente a poente, respirando ar rarefeito de oxigênio, a folha mascada da coca disponível em abundância naquelas montanhas áridas será o lenitivo sedante. Para adolescentes ricos e escolarizados das cidades norte-americanas, vivendo a experiência humana em condições de individualismo e liberação permissiva, respirando publicidade, coca-cola e hamburgers, o sintético ecstazy em abundância será o estimulador do prazer e do jogo de alterações perceptivas.
E, num certo momento, perco o controle e deixo de ser sujeito para tornar-me coisa. Se comia, bebia ou fumava para viver, agora vivo para comer, beber ou fumar. Até perder a consciência das saciedades e, obcecado, atingir o ápice das formas de alienação: a coisa captura habilidades e sentidos humanos, o humano é tragado pela coisa, coisificando-se no pico e no pó.
Existem objetos que instauram dependência psicológica, com subsidiárias alterações fisiológicas. A saída envolve, basicamente, psicoterapia e reconstrução dos scripts, das narrativas e dos significados de vida. Existem outros objetos que instauram dependência física, com subsidiárias alterações psicológicas. A saída envolve a desintoxicação e a tolerância da dor da abstinência, diretamente, ou mediada por estratégias de redução de danos. Cada caso é um caso. Não há panacéia, ou milagre.
Nas sociedades atuais, urbanas, de massa, o abuso de drogas e a dependência química tornaram-se um emergente biopsicossocial que ultrapassa as fronteiras de renda, escolaridade, confissão religiosa, raça, credo político e classe social. A partir de narrativas e de objetos diferentes, a extensão do problema é muito grande, exigindo cuidado na elaboração da solução, para que não represente uma nova caça às bruxas, outro grande asilamento ou a metástase de gigolôs da tragédia, em meio a negócios, negociantes, moralistas e políticos populistas.
É da tradição popular a expressão “vender o peixe”. E ela tem respaldo na história dos povos que realizavam suas trocas, mas sob explicações místico-religiosas. Então os alimentos podem ser fortes ou fracos, reimosos ou não reimosos, puros ou impuros. E de qual pureza estamos falando? A sanitária, das limpezas e asseios, ou a moral, das virtudes?
Se em meio a mares salgados e pequenos rios salobras, fartava-me de peixe de escama e havia sobra para as trocas comerciais, como permitir que os povos das planícies de aluvião, pescadores de peixe de couro e criadores de porcos ocupassem meu mercado? Então peixe de escama passa a ser bom, saudável, puro, virtuoso. Peixe de couro e carne de porco passa a ser ruim, pestilencial, pecaminosa, suporte à vara dos demônios.
A cada momento histórico, em acordo com o jogo dominante dos interesses e das idéias que legitimam os interesses - expressões cambiantes e vagas e indiretas e não lineares destes jogos político-econômicos - nós criamos categorias explicativas que vão operar em vários níveis: das crenças, no quotidiano social, até as leis, passando pela mão invisível dos mercados.
Antes da identificação dos efeitos negativos, individuais e coletivos, do uso das bebidas alcoólicas - absenteísmo no trabalho, cirrose, câncer etc -, montou-se poderosa máquina de negócios, lucro, propaganda, e grande parte da população habituou-se ao uso próprio e dos outros, criando defesas contra os excessos, então o processo de produção, distribuição e consumo do álcool foi assumido socialmente como tolerável e legal, tornando-se lícito. Deste modo, a nova droga, que chega agora para a experiência humana, sem rito defensivo, sem adaptação biológica, mas garanta lucro extraordinário nos circuitos marginais da economia, torna-se ilícita.
Porém, esse também é um modelo geral. Para cada caso é preciso reconstruir a história, os efeitos no corpo e os valores atribuídos: seja a moda de absinto na França e de ópio na China, ambos no século XIX; seja o haxixe como presente da deusa Shiva, na Índia, ou ferramenta para êxtase místico dos derviches árabes, ou mediador das rebeliões homicidas dos seguidores do Velho da Montanha; seja a diamba, no século XX, consumida nas ruas e praças do Maranhão, por exemplo, nos anos 50 e 60, ou a marijuana dos hippies nos anos 60 e 70, e que não produziam a categoria social do maconheiro, ou a maconha de hoje, alterada, prensada, envolvida em químicos para iludir cães farejadores.
Desta discussão podemos deduzir que as várias drogas geram impactos pelo seu abuso, não pelo enquadramento legal, fortuito, em lícita ou ilícita. A compreensão dos processos e a formulação de saídas para os problemas devem, inclusive, questionar estes rótulos.
3. É possível uma política pública referente ao uso e ao abuso de drogas e à dependência química? Se possível, qual seria sua lógica organizacional?
Pelo que disse até agora, a determinação da escolha, a dinâmica da produção do abuso, o processo de instalação da dependência, a construção individual de defesas, a construção cultural de ritos de contenção, a acessibilidade e a disponibilidade econômica dos agentes, constituem emaranhado de extrema complexidade, com velozes deslizamentos de significados e legitimações, sobretudo em sociedade tecnológica, fundamentada no consumo.
Vejamos a situação contemporânea do Brasil, país exposto a um crescimento econômico significativo, que o coloca entre os 10 mais ricos do mundo, emplacando um milionário individual entre os 10 mais, porém incapaz de colocar uma única universidade entre as 150 melhores do mundo. Este Brasil, que nos últimos 60 anos passou de 70% rural para 70% urbano, apresenta indicadores monstruosos de iniqüidade social, miséria, desemprego, analfabetismo e degradação ambiental, mas tem os melhores textos legais de políticas de saúde, seguridade social, suporte ao trabalho e proteção ecológica.
Vivemos, realmente, grandes contradições: a experiência democrática é de apenas 46 anos (1945-1964 e 1985-2011), mas, por ser recente e truncada ao meio por uma ditadura militar, superficial e frustra, ainda não criou uma cultura democrática no Estado, na Sociedade e no Mercado; também, por fetichizar política eleitoral, criamos icônicos tsunamis de eleições a cada dois anos, mudando a configuração da hegemonia política a cada dois anos, refazendo bases legislativas de apoio ao executivo a cada dois anos, descontinuando planos e programas, sobrando pedaços de projetos no vácuo das boas intenções.
Vivemos, realmente, grandes contradições: a maioria das nossas ações é de curto prazo, sob a égide do marketing, sem fôlego no financiamento, na execução, no acompanhamento e na avaliação, mas são chamadas de políticas; e estas ações são duplicadas, em cada poder da república e em cada segmento administrativo de cada poder, mas são chamadas de integrais e intersetoriais.
O problema da dependência química, como se configura clinica e epidemiologicamente nas cidades e nos campos do Brasil – nos campos, sim, pois crescem os registros de motoqueiros, nas estradas tortuosas e secas do sertão nordestino, roubando os aposentados do FUNRURAL, para, com o resultado, adquirirem crack – constitui, simultaneamente, um problema de Saúde, de Educação, de Cultura, de Economia, de Segurança e de Polícia, exigindo, de modo radical, políticas integradas e ações cooperadas.
Porém os planos se esgotam no diagnóstico. Os projetos se esgotam na retórica da formulação e no imediatismo fácil da resposta emocional, sintonizado com o último levantamento de opinião pública e enquanto dura o interesse da mídia de massa. A ênfase também muda, dependendo do protagonismo de algum ator de ocasião. Se o protagonista é do campo da Saúde, chama-se todo o processo de compreensão e de solução para este campo, pois os demais seriam insuficientes, secundários ou incompetentes. Se o protagonista é da Educação, lá se vai o conjunto dos investimentos simbólicos, acompanhados de algum investimento financeiro, para este campo, como explicação e solução. E assim por diante.
A ciranda do desespero social, sobretudo quando atinge as classes médias urbanas, leva à ciranda dos políticos a resolverem toda e qualquer coisa com audiências públicas cenográficas, à cirando dos legisladores a formularem mais uma lei com imensa dificuldade de pegar no concreto e oferecer resultados, à ciranda dos intelectuais a formularem teorias pontuais com imensa possibilidade de apenas gerarem papers e consultorias. A ciranda dos interesses econômicos, lícitos ou ilícitos, inaugura novos objetos para a catexe dos vazios existenciais, o que leva à moda das drogas de uso, à moda de pesquisas, à moda de metáforas a ilustrarem de boas intenções os marketings institucionais e as novelas de TV. Hoje, então, neste passo, em pouco tempo, o Brasil será uma imensa Cracolândia.
As possibilidades de adicção a objetos simbólicos, e de enfrentamento dos problemas subseqüentes, resultam de vastos, genéricos e abstratos processos sociais, na fonte das características de nosso modelo civilizatório, do modo de produção das condições de existência (a forma pela qual cada sistema social se expressa para produzir e distribuir riqueza) e do modo de produção de verdades (a forma pela qual cada sistema social se expressa para produzir e distribuir saberes, ideologias, teorias filosóficas e científicas).
A educação filosófica, a pactuação de uma ética pública, a regulação do mercado por um estado democrático e o desenvolvimento de uma cultura humanística solidária parecem ser os caminhos que podem nos levar para fora da crise de valores, de relações e de papéis que vivemos.
Mas, as possibilidades de adicção a objetos concretos, e de enfrentamento dos problemas subseqüentes, resultam de processos mais identificáveis objetivamente, com recortes, diagnósticos, terapêuticas e prognósticos operacionalizáveis. Os campos da Educação, dos Formuladores de Códigos e Leis, dos Operadores de Códigos e Leis e da Saúde devem constituir uma vigorosa parceria interdependente, para a criação e a execução de uma política de Estado, não de Governo ou de Partido.
Na Educação, é preciso superar os parâmetros do Período Napoleônico, que considerava responsabilidade do Estado oferecer quatro anos de escolaridade, cujo projeto político pedagógico estabelecia o domínio mínimo das quatro operações fundamentais da Matemática e da capacidade mais simples de comunicação pela escrita e pela leitura na própria língua. Hoje, precisamos dominar os avanços da Matemática, além de compreender o que se escreve e o que se lê na própria língua, em língua de prática universal e em língua da informática. Precisa-se, portanto, de pelo menos 10 anos de escolaridade em escola tempo integral, aparelhada por esporte, arte, formação para a cidadania e a longevidade, a saúde e a qualidade de vida.
Os Formuladores de Códigos e Leis estão desafiados à humildade e à eficiência, pois os documentos não passam de intenções geradoras de ansiedade, frustração e sentimentos de impunidade, se não acompanhados de condições concretas de aplicação, se não contemplarem o complexo processo histórico daquilo que se quer prevenir/controlar/combater, se não resultarem em pactos sociais abrangentes, se não criarem uma consciência consensuada entre os operadores/aplicadores. Mais uma lei que não pega aprofunda a heteronomia social, confunde a cidadania, engendra a proliferação de oportunistas entre operadores/aplicadores e é tragada pela má consciência de quem tira vantagem da universalização das águas turvas.
Os Operadores de Códigos e Leis estão desafiados à competência técnica, à densidade humanística das atitudes e à honestidade. Pois, como enfrentar os negócios do tráfico de drogas e do tráfico de armas, seu correlato, se parte do sistema policial, por exemplo, mal formada, mal paga, apenas engrenagem de uma corrente burocrática e autoritária, se corrompe e apóia a contravenção? Como implantar uma reforma educacional, legal e sanitária se este elo se rompe, se quebra e, como metástase, se associa ao crime?
O campo da Saúde tem dupla e, muitas vezes, contraditória tarefa. A Educação, a Promoção, a Prevenção e a Vigilância, na atenção primária, vinculam-se às comunidades e às famílias, portanto, estrategicamente, à Educação, por meio de projetos coletivos, na tarefa de impedir que o dano se instale. A Assistência, ambulatorial, emergencial, urgencial e hospitalar, nas atenções secundária e terciária, vinculam-se aos indivíduos, por meio de projetos terapêuticos, para a redução de danos e o cuidado reparador. Mas as ações não são concatenadas e planejadas, pairando o imediatismo, o subdimensionamento dos serviços e a precariedade.
A título de exemplo, analisemos alguns dados de Fortaleza, uma metrópole de 2.500.000 habitantes, pelo menos 500.000 deles abaixo da linha de pobreza, apenas a metade dos domicílios ligados a sistema de esgotamento sanitário, e que se encontra em 29º lugar no ranking do IDH das 33 regiões metropolitanas brasileiras.
Fortaleza é capital de um estado que fica em 17º lugar no ranking da distribuição de matrícula no ensino superior das 27 unidades da federação, com analfabetismo por volta de 12% da população acima de 15 anos, apresentando 31 casos de mortalidade infantil por mil nascidos vivos (quase o dobro da média brasileira) e 16 mortes por causas externas a cada 100 mil habitantes, e que, em 2010, realizou apenas R$ 157,00 de transferência do erário para os cuidados do SUS, por habitante/ano.
E esta cidade não tem emergência/urgência psiquiátrica nas emergências/urgências gerais, não tem unidades de desintoxicação e de apoio à síndrome de abstinência nos hospitais gerais, não tem unidade de comando Justiça/Polícia/Saúde para o enfrentamento da relação doença/crime do usuário e para o enfrentamento do tráfico, não tem comunidades terapêuticas públicas para a reversão do quadro de dependência até que o cliente se habilite ao tratamento ambulatorial. Somente tem seis Centros de Atenção Psicossocial para álcool e outras drogas, subdimensionados em pessoal, o pessoal existente mal remunerado, inadequadamente formado e contratado por meio de vínculos provisórios – prestação de serviços, projetos de cooperativas, empresas de terceirização -, realizando milagres de boa vontade e de paixão, além de poucas comunidades terapêuticas privadas, confessionais, de natureza filantrópica, ideologicamente identificadas com o conceito do tratamento como prêmio à força de vontade do cliente, exatamente diante dos casos em que a volição foi a primeira função a transtornar-se e a adoecer.
Se eu tiver um transtorno que não afeta minha vontade, uso minha vontade como parceira dos terapeutas e dos projetos terapêuticos. Mas quando é a própria vontade que falha, desaba num vazio, paralisa diante da ambiguidade de sentidos e de significados, perde a capacidade de auto-alavancar-se? Vou ficar seis, 12, 24 meses internado para que se opere em mim a prótese de uma vontade que resista às seduções do imediato e dos fetiches, numa sociedade cheia deles, por todos os lados?
Que mídia de massa, que educação, que família, que estrutura individual de vontade, que projeto societário são esses que me colocaram de boca escancarada diante de um vazio que somente a fissura preenche? E, incapaz de se compreender e se re-estruturar, que sociedade é essa que inventa uma nova peste, uma nova lepra, uma nova loucura, e, apavorada com o que criou, quer oferecer como resposta um novo asilamento?
O Ministério Público tem papel estratégico no equacionamento desta problemática, pois se faz necessário coordenar uma política específica, interdisciplinar e intersetorial, que atente para a prevenção do tráfico, respeitando liberdade e privacidade; para a repressão do tráfico, não confundindo usuário com traficante; para a inclusão da educação em saúde e qualidade de vida como integrante de uma educação para a cidadania que habite o projeto pedagógico de todo o ensino básico; e para a implantação de uma rede articulada de cuidados – desintoxicação, contenção da abstinência, proteção comunitária e atenção psicossocial territorial – baseada em serviços públicos, tocados por trabalhadores bem formados e com vínculo estável de trabalho, rede esta bem dimensionada em relação à população.
A dependência química transforma a existência de cada ser humano que a desenvolve em uma catástrofe angustiada, em uma tragédia desesperada, em uma coisa externa ao si mesmo, que se volta contra o si mesmo e o despedaça. Mas nós todos somos responsáveis, partícipes da determinação e partícipes da solução, desafiados a salvar no outro a nossa própria condição.
Esse alinhamento crítico é minha esperança. Por isso, ainda, falo.
MUITO OBRIGADO!