quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Adolescentes Apreendidos após bárbara agressão em São Gabriel

Dada a repercussão do fato, achei importante trazer, na íntegra, a representação oferecida na data de ontem contra os adolescentes que praticaram o  crime que foi registrado pelas câmeras de segurança e publicada nas redes sociais. É importante mostrar à sociedade, que se sente vulnerável com tais atitudes, que não é verdadeira a expressão "para os menores não dá nada". Eles já estão internados na CASE, o que equivale a uma prisão preventiva em caso de adultos. Isso tudo graças à integração entre as polícias e o Ministério Público em São Gabriel, além da presteza do Poder Judiciário em atender aos reclamos da população que exigia resposta imediata á barbárie praticada. parabéns a todos!



EXMA. SRA. DRA. JUÍZA DE DIREITO DO JUIZADO DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DA COMARCA DE SÃO GABRIEL:

 

 

NÓS VOS PEDIMOS COM INSISTÊNCIA:
NÃO DIGAM NUNCA: ISSO É NATURAL!
DIANTE DOS ACONTECIMENTOS DE CADA DIA,
NUMA ÉPOCA EM QUE REINA A CONFUSÃO.
EM QUE CORRE SANGUE,
EM QUE O ARBITRÁRIO TEM FORÇA DE LEI,
EM QUE A HUMANIDADE
SE DESUMANIZA,
NÃO DIGAM NUNCA: ISSO É NATURAL!
PARA QUE NADA PASSE A SER IMUTÁVEL!

Bertold Brecht

 

O Ministério Público, por sua Promotora de Justiça signatária, no uso de suas atribuições legais e constitucionais, com base no Relatório de Investigações n.º 031/5.12.0000337-0, oriundo da Delegacia de Polícia desta cidade, oferece representação contra

 
..................... e  ....................

 ATOS INFRACIONAIS :

 
I. No dia 05 de Outubro de 2012, por volta da 01h20min, na Rua General João Manoel, em via pública, nesta Cidade, os infratores ..................e ........................, em comunhão de esforços e conjugação de vontades, com animus necandi, por motivo fútil e mediante recurso que dificultou a defesa do ofendido, deram início à conduta de matar a vítima SAMUEL DA TRINDADE, o qual não se consumou por motivos alheios à vontade dos infratores, pois a vítima recebeu socorro médico de urgência, e se encontra internada na Santa Casa de Caridade de São Gabriel,.
 
II. Nas mesmas circunstancias espaciais e temporais, os infratores ...................... e ........................., em comunhão de esforços e conjugação de vontades, subtraíram, para si, uma carteira de cigarros, pertencente à vítima SAMUEL DA TRINDADE.
 Na oportunidade, os infratores ........................... e .....................estavam na companhia de Edson Sandalva Junior, alcunhado “Dedé” e Marcos Mello Xavier, alcunhado “Marquinhos”, caminhando pela via pública acima referida, quando a vítima dirigiu-se a .........., xingando-o. Em razão disso, .............., o qual se encontrava mais à frente, retornou e repreendeu a vítima, momento em que Samuel foi empurrado por .............., tendo este lhe desferido um soco.
 
Nesse ínterim, ................ avançou em direção à vítima e a derrubou com uma ‘tranca’. Quando a vítima caiu, já inerte, .............desferiu lhe desferiu seis chutes, enquanto ................ desferiu dezenove golpes (chutes e pisões), todos de forma violenta, intensa e contínua, contra a cabeça da vítima, a qual não esboçou nenhuma reação.
 
Após afastarem-se da vítima, passado alguns instantes, os adolescentes infratores retornaram correndo, sendo que ..............desferiu mais um chute, seguido de um “pisão” na cabeça da vítima, e .............subtraiu uma carteira de cigarros, a qual se encontrava no bolso da vítima.
Em virtude da bárbara agressão sofrida, a vítima restou lesionada conforme aponta o auto de exame de corpo de delito de fls., que refere: “... paciente no leito, em coma induzido. Entubado, com sondas vesical e nasogástrica, além de soroterapia endovenosa; na hemiface esquerda, sete soluções de continuidade superficiais da epiderme (escoriações) medindo a maior 1,8 x 1,5 centímetros. No sumário de internação na UTI, às 03:00h do dia 05.10.2012, consta: “Samuel Trindade, 37 a, masc., br... Paciente vítima de agressão física, encaminhado do P.A. Ao exame comatoso... isofotorreagente, corado, eupnéico, hálito etílico, sem alterações motoras focais, sem febre. Fc 144. TA 110/80. FR:17... Contusões periorbitárias e maxilares bilaterais...”. O exame de tomografia computadorizada de crânio evidenciou: “Edema de partes moles na face e periorbitário. Sinais de edema cerebral. Higroma bi-frontal.”
 Os adolescentes infratores ......................................... agiram por motivo fútil, haja vista que agrediram a vítima após pequena discussão. Outrossim, os infratores agiram mediante recurso que dificultou a defesa do ofendido, visto que agrediram a vítima após ela ter caído, estando portanto indefesa, e agiram em conjunto, acertando-a com inúmeros golpes brutais na cabeça.
 
Assim agindo, os infratores ......................e ........................, praticaram o ato infracional previsto no artigo 121, § 2º, incisos II e IV na forma do artigo 14, inciso II c/c artigo 29, “caput”, e artigo 155, IV, na forma do artigo 69, caput, todos do código Penal, c/c o artigo 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente motivo pelo qual o Ministério Público oferece a presente representação, requerendo que, recebida e autuada, seja instaurado procedimento para a aplicação de medida socioeducativa, com a notificação do adolescente e seus responsáveis legais para comparecerem à audiência de apresentação, inquirida a pessoa abaixo arrolada, ao final, julgada procedente a representação, com a aplicação da medida adequada.
 

São Gabriel, 10 de Outubro de 2012.

 

Ivana Machado Battaglin,

Promotora de Justiça.

 

ROL :

 

Vítima:

SAMUEL DA TRINDADE, Residente na Rua Manoel Barbosa, n.º 67, Bairro Siqueira, nesta cidade;

Testemunhas:

 
  1. CINTIA REGINA CORREA DOS SANTOS CASSOL, policial civil lotada na Delegacia de Polícia de São Gabriel;
MARIA RITA BUERE, policial civil lotada na Delegacia de Polícia de São Gabriel;

 
  1. HUGO DA CUNHA FERNANDEZ GONÇALVES, residente na Rua João Manoel, 403, Centro, nesta cidade;

  1. ANA CLAUDIA DE ATAIDE VARGAS, residente na Rua Carlos Eduardo Pizarro da Silveira, n.º 153, Bairro Bela Vista, nesta Cidade;

  1. JULIANO MOREIRA E SILVA, residente na Rua Treza de Maio, n.º 62, Bairro Capiotti, nesta Cidade;
MARCOS MELLO XAVIER, residente na Rua Abel Corrêa da Silva, n° 113, Bairro São Clemente, nesta Cidade;

 
  1. EDSON SANDALVA JUNIOR, residente na Rua São Gerônimo, n° 24, Bairro Élbio Vargas, nesta Cidade.
REQUERIMENTO DE INTERNAÇÃO PROVISÓRIA:

 MM. Juíza:

A Autoridade Policial representou pela internação provisória dos adolescentes ...................e .....................  Aos adolescentes é imputada a prática do ato infracional de tentativa de homicídio qualificado seguido de furto. Pondere-se que o fato é grave, praticado com barbárie, demonstrando que os adolescentes não demonstram apreço pelas regras da vida social, tampouco pela vida humana.
Tal ato demonstra o espírito delituoso dos adolescentes, pois praticaram ato infracional de extrema gravidade, já que os golpes exibidos pelas imagens, tranquilamente, poderiam ter ocasionado a morte da vítima, a qual se encontra desde então internada na CTI do nosocômio local, em estado gravíssimo.
Em casos tais, as segregações se impõem não apenas como consequência legal de seus atos, mas também como proteção da própria comunidade em que vivem esses adolescentes infratores.
Para a internação provisória (processual) ou em flagrante, exigem-se os pressupostos da “gravidade do ato, repercussão social, garantia da segurança do adolescente ou manutenção da ordem pública”, premissas fixadas no art. 174 do ECA.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 108, parágrafo único, elencou os seguintes requisitos para a decretação da internação provisória:

a) indícios suficientes de autoria;

b)   indícios suficientes de materialidade do ato infracional;

c)    demonstração da necessidade da internação provisória.

Da análise dos autos, verifica-se que os requisitos supracitados estão devidamente satisfeitos, senão vejamos:

Primeiro, a materialidade do ato infracional de homicídio tentado, considerando-se o crime contra a vida o mais grave de todo o ordenamento jurídico, restou devidamente comprovada pelas imagens captadas pelas câmeras, boletins e prontuários médicos da Santa Casa de Caridade Local, bem como pelo auto de exame de corpo de delito firmado por perito médico legal.

Segundo, há indícios suficientes de autoria, uma vez que, a par das imagens obtidas com as câmeras de segurança, nas quais houve os confronto das roupas utilizadas pelos infratores na data do fato com as que vestiam por ocasião de seu depoimento na Delegacia de Polícia (vide fotos de fls.), os adolescentes admitem a prática do fato, se autorreconhecendo nas imagens.

Terceiro, a medida extrema, por sua vez, se mostra absolutamente necessária, ante a gravidade do ato infracional cometido por .................. e ......................., uma vez que envolve o delito de tentativa de homicídio qualificado, que resultou em graves ferimentos à vítima, cometido de forma totalmente desproporcional, por motivo fútil, e pelo concurso de pessoas, o que demonstra a absoluta ausência de limites, além de extrema ousadia por parte dos jovens.
De se registrar, por oportuno, que as imagens tiveram ampla divulgação na imprensa estadual, além de terem sido disseminadas nas redes sociais, com quase seis mil acessos no youtube. O clamor da sociedade por uma resposta firme ao bárbaro delito praticado, é evidente.

 Convém lembrar também que, neste caso, além da gravidade do ato infracional, a medida excepcional da internação provisória justifica-se pela garantia da firme instrução processual, da preservação da ordem pública e da segurança dos próprios adolescentes infratores, que colocam a sociedade e si próprios em risco diante da ausência de senso crítico e limites.

 Assim, verifica-se que a necessidade da internação provisória não é relativa ou questionável, mas sim imperiosa, inarredável e absolutamente vital para neutralizar a gravidade do fato, acalmar a ordem pública e garantir a firme instrução processual.

De todo o exposto, tem-se que a internação provisória é medida necessária quando os infratores praticaram ato infracional extremamente grave, em concurso de agentes, empregando lesões gravíssimas para a vítima (que, se sobreviver, certamente terá sequelas graves, quiçá irreversíveis), denotando, pois, pouco respeito pela vida alheia, gerando perigo ao meio social e demonstrando impossibilidade atual de convivência harmoniosa com os seus pares e ausência de senso crítico.

É, também, a única medida capaz de agir com eficácia para cumprir o caráter expiatório das medidas socioeducativas exigido em casos como o em tela.

Há necessidade de se repudiar o que se vê na realidade atual, que são os adolescentes infratores gozando benesses da impunidade em liberdade, enquanto os cidadãos honestos, trabalhadores, dignos, e que rechaçam o ato infracional como meio ou forma de vida, quando não são vítimas fatais, são obrigados a continuarem como reféns de adolescentes infratores.

Por derradeiro, menciona-se que ambos os adolescentes possuem vários antecedentes por crimes graves, tais como roubo e tráfico ilícito de entorpecentes.

Desta forma, o Ministério Público, visando à preservação da instrução processual, a aplicação de medida socioeducativa eficaz e, especialmente, a garantia da ordem pública, fortemente abalada pela gravidade do ato infracional, requer a decretação da internação provisória dos adolescentes .....................e ...................., nos termos do artigo 108 c/c o artigo 122, inciso I, ambos da Lei n.º 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

sábado, 17 de março de 2012

Discurso proferido por ocasião do lançamento da Cartilha Nacional "O Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher: Uma Construção Coletiva", do COPEVID/GNDH




Eu tenho uma espécie de dever, dever de sonhar, de sonhar sempre, pois sendo mais do que uma mera expectadora de mim mesma, eu tenho que ter o melhor espetáculo que posso.



Emprestando a poesia de Fernando Pessoa eu já anuncio, senhoras e senhores, que estou em busca da realização do sonho do fim da violência doméstica, aquela mesma inserta no § 8o do art. 226 da Constituição Federal, o qual diz que  “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”,  e finalmente implementada pela cognominada Lei Maria da Penha.



Sonho com a igualdade já preconizada por Aristóteles, e repetida por Rui Barbosa, segundo o qual a “regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. (...) Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real.”



E para isso veio a lei Maria da Penha, com disposições que contemplam essa desigualdade histórica criando mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, e  ainda estabelecendo medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.



Alguns criticam a Lei, resistem a ela. Inclusive, e principalmente, os operadores do direito – aqueles que tem o dever de implementá-la. Impregnados pela cultura, que impôs à mulher um papel de menos valia ao longo da história, acabam por considerar que as disposições da Lei Maria da Penha, considerada pela ONU como uma das leis mais avançadas do mundo, fere o princípio da igualdade entre homens e mulheres.



Parece que estamos num mundo ao avesso, como o relatado por Galeano em seu livro “De pernas para o ar – a Escola do Mundo ao Avesso”.

Fala ele no citado livro:

O mundo ao avesso nos ensina a padecer a realidade ao invés de transformá-la, a esquecer o passado ao invés de escutá-lo e a aceitar o futuro ao invés de imaginá-lo: assim pratica o crime, assim o recomenda. Em sua escola, escola do crime, são obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e resignação. Mas está visto que não há desgraça sem graça, nem cara que não tenha sua coroa, nem desalento que não busque seu alento. Nem tampouco há escola que não encontre sua contra-escola.”

Façamos, pois, a nossa escola para ‘desvirar’ esse mundo que anda de pernas para o ar, onde a violência impera nos lares e, então, transborda nas ruas, porque produz famílias doentes, crianças e jovens delinqüentes.

Ainda Galeano, no capítulo do mesmo livro, intitulado “Curso Básico de Racismo e Machismo”, chama atenção ao fato de que antes mesmo da inquisição dedicar um manual inteiro, da primeira à última página, à justificação do castigo da mulher e à demonstração de sua inferioridade biológica, já haviam sido elas “longamente maltratadas na bíblia e na mitologia grega, desde os tempos em que a tolice de Eva fez com que Deus nos expulsasse do paraíso e a imprudência de Pandora abriu a caixa que encheu o mundo de desgraças. ‘A cabeça da mulher é o homem’, explicava São Paulo aos Coríntios, e dezenove séculos depois  Gustave Le Bon, um dos fundadores da psicologia social, pode concluir que uma mulher inteligente é algo tão raro quando um gorila de duas cabeças”. Não se espantem, senhoras e senhores, pois tem mais: “Charles Darwin reconhecia algumas virtudes femininas, como a intuição, mas eram ‘virtudes características das raças inferiores’.”

Mas isso tudo, que parece tão absurdo, e tão distante historicamente, não está apartado na nossa atualidade.

“No mundo de hoje, nascer menina é um risco”, adverte a diretora da UNICEF. E denuncia a violência e a discriminação que a mulher sofre, no mundo todo, a despeito das conquistas dos movimentos feministas no mundo todo. Em 1995, em Pequim, a Conferência Internacional sobre os Direitos das Mulheres revelou que, no mundo atual, elas ganham a terça parte do que ganham os homens por trabalho igual. De cada dez pobres, sete são mulheres. De cada cem mulheres, apenas uma é proprietária de algo.”

Voa torta a humanidade, pássaro de uma asa só.

E prossegue Eduardo Galeano:

“Nos parlamentos, em média, há uma mulher para cada dez legisladores, e em alguns parlamentos não há nenhuma. Se reconhece à mulher certa utilidade em casa, na fábrica ou no escritório e até se admite que possa ser imprescindível na cama ou na cozinha, mas o espaço público é virtualmente monopolizado pelos machos, nascidos para as lidas do poder e da guerra. Carol Bellany, que encabeça a agência UNICEF das Nações Unidas, é um caso raro. As Nações Unidas pregam o direito á igualdade, mas não o praticam: no mais alto nível, onde são tomadas as decisões, os homens ocupam oito de cada dez cargos no máximo organismo internacional.”

Ainda temos muito a andar. Mesmo num país onde a Presidência da República é ocupada por uma mulher, e nos cargos públicos cada vez mais as mulheres ocupam seu espaço, mostrando não só sua propalada delicadeza e sensibilidade, mas sobretudo sua força, ainda é longo o caminho a se trilhar na busca da verdadeira justiça.

E digo isso porque, ao sonhar a igualdade material entre homens e mulheres, e com isso o fim da violência contras as mulheres e meninas, sonho nada mais do que justiça, aquela que, nas palavras do mestre Saramago, não deverá esquecer-se de que é, acima de tudo, restituição, restituição de direitos. Todos eles, começando pelo direito elementar de viver dignamente. Se a mim me mandassem dispor por ordem de precedência a caridade, a justiça e a bondade, daria o primeiro lugar à bondade, o segundo à justiça e o terceiro à caridade. Porque a bondade, por si só, já dispensa a justiça e a caridade, porque a justiça justa já contém em si caridade suficiente. A caridade é o que resta quando não há bondade nem justiça.”

E esse sonho por justiça, igualdade e concretização de direitos, tem sido buscado no trabalho junto à Comissão Permanente de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – COPEVID, que integra o Grupo Nacional de Direitos Humanos – GNDH -, este formado por Promotores e Promotoras de Justiça de todo o país. Como membro integrante da COPEVID, ao lado da querida colega Veleda Dobke, é que hoje estamos todos aqui para o lançamento da cartilha que marca o trabalho de aproximadamente um ano, por parte de todos os seus integrantes. Uma cartilha destinada aos multiplicadores, parceiros na luta contra a violência doméstica e familiar contra a mulher, que é justamente uma CONSTRUÇÃO COLETIVA.

E agradecendo a presença de todas as senhoras e os senhores, concito-vos a construir esse sonho, transformar a  realidade, e com urgência.

Para finalizar, valho-me do poeta russo Maiakóviski:

Por enquanto
                    há escória
                                    de sobra.
0 tempo é escasso -
                              mãos à obra.
Primeiro
             é preciso
                           transformar a vida,
para cantá-la -
                      em seguida.


São Gabriel, 16 de março de 2012.

Ivana machado Battaglin,
Promotora de Justiça da Promotoria de Justiça Criminal de São Gabriel
Membro integrante do COPEVID/GNDH

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Violência doméstica e concretização dos direitos

Dada a relevância da questão posta em debate, transcrevo, abaixo, o artigo originalmente publicado na intranet- MPRS, da lavra do Promotor de Justiça Vinicius de Melo Lima. Excelente artigo:

O debate em torno da constitucionalidade da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) trouxe a lume as relações intrincadas e tortuosas de famílias nas quais predomina a violência contra a mulher.
A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal conferiu interpretação conforme a Constituição aos artigos 12, inciso I, 16 e 41 do diploma legal em comento, afastando a necessidade de representação para o desencadeamento da persecução penal.

Com efeito, sendo a ação penal pública incondicionada, a vítima deixa de assumir uma posição antagônica frente ao agressor, competindo ao Estado (Ministério Público) a proteção dos direitos fundamentais da mulher em situação de violência doméstica. Nessa linha de entendimento, a Corte assentou a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, bem como a incidência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da proibição da proteção insuficiente, haja vista que expressiva quantidade de casos resultava em arquivamento diante da renúncia ao direito de representação por parte da ofendida.

Merece relevo, pois, que em casos tais está-se, em realidade, diante de relações pautadas pelo sentimento de poder ou de posse, relegando-se o afeto para um plano inferior, com prejuízos à estruturação do complexo familiar. Não raras vezes, a mulher, pressionada pelo agressor, acabava renunciando à representação, por razões diversificadas (dependência financeira, filhos em tenra idade, esperança de mudança de comportamento por parte do companheiro/marido agressor, etc.).

Afigura-se como corolário da hermenêutica constitucional a concretização dos direitos humanos e fundamentais, em todas as suas dimensões, sendo que não há discricionariedade imune a controle. Dito de outro modo, não há liberdade para que o intérprete confira interpretação ao texto de acordo com as suas convicções pessoais, de maneira divorciada do sentimento constitucional (Verdú).

Se a família goza de proteção por parte do Estado (artigo 226, § 8º, da Carta da República), a interpretação da legislação de regência deve percorrer o caminho da concretização constitucionalizante, sob pena de se conviver com uma Constituição meramente simbólica (Neves), abrindo um verdadeiro fosso ou abismo entre a previsão formal e o mundo da vida.

Ora, a compreensão da violência de gênero como um problema de direitos fundamentais conduz à superação de pré-juízos inautênticos (Gadamer), calcados no denominado “senso comum teórico” dos juristas (Warat), a depositar crença quase inarredável em falácias tais como “em briga de marido e mulher não se mete a colher” ou “bateu sim, mas foi na mulher dele”, espalhadas pelo imaginário coletivo.


Há quem ainda sustente, não obstante a decisão do Pretório Excelso, que, em relação ao crime de ameaça, ainda prevaleceria a necessidade de representação para a propositura da ação penal. Tal leitura não está em consonância com o entendimento da Corte e com o dever de proteção aos direitos fundamentais, haja vista a amplitude do conceito de violência contra a mulher e suas várias formas, incluindo-se a violência psicológica.

Não bastasse isso, impõe-se a adoção da teoria do diálogo das fontes, desenvolvida por Erik Jaime, apontando para um diálogo entre a Lei Maria da Penha e o Estatuto da Criança e do Adolescente, porquanto ambos os diplomas legais protegem a família e estão alicerçados no princípio da igualdade material. Consoante a lição de Aristóteles, atualizada por Rui Barbosa a igualdade significa tratar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam. Um ato de violência contra a mulher, presenciado de maneira sistemática pelos filhos, dentro do ambiente doméstico, traz sérias consequências ao processo de formação e desenvolvimento psicossocial de crianças e adolescentes. A tendência natural, por óbvio, é a reprodução da violência como uma manifestação que decorre das práticas vivenciadas a aprendidas entre quatro paredes, afinal, “sempre foi assim”!

É justamente esse “caldo de cultura” de violência que impõe uma reflexão por parte dos atores sociais e do Sistema de Justiça, no sentido da promoção de uma ruptura com a vergonha, com o silêncio, a partir da compreensão da violência doméstica como um problema não apenas de “marido e mulher”, mas sim, um problema comunitário e, sobretudo, um problema de direitos fundamentais.

No cenário jurídico, há um ranço positivista no que tange à aceitação passiva das fontes sociais do Direito, dentre elas o costume, de modo a se legitimar práticas que ofendem os direitos fundamentais. Se a violência é fruto do costume de uma sociedade patriarcal e que se move por uma lógica de dominação, não há o avanço ou a denominada função promocional ou precursora de valores por parte do Direito (Bobbio).

O paradoxo de apontar para o futuro, com instrumentos normativos pretéritos (ex. fontes sociais do Direito, fruto do apego ao positivismo) reforça a importância do papel da concretização constitucional na promoção e transformação da sociedade por intermédio da defesa intransigente dos direitos humanos e fundamentais.

Por conseguinte, é de se registrar que, na atual quadra vivida, o Direito possui inequívoca dimensão temporal e deve render-se à dinamicidade da vida em toda a sua plenitude, vida do ser que somente se completa na sua relação com o outro (Heidegger). A essência do compartilhar, do comunicar-se, enfim, do ser-com, depende da comunhão entre o texto e a realidade na caminhada rumo à produção de sentido (norma).

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

EM BRIGA DE MARIDO E MULHER, O MINISTÉRIO PÚBLICO PODE, E DEVE, METER A COLHER

Às vésperas de se comemorar o dia internacional da mulher, em 08 de março, temos outro fato a festejar: a recente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no dia 09 de fevereiro, que por unanimidade, afirmou a validade constitucional da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006).

A decisão, em suma, confirmou que a lei não ofende o princípio da isonomia (entre homens e mulheres) ao criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, que é “eminentemente vulnerável quando se trata de constrangimentos físicos, morais e psicológicos sofridos em âmbito privado”.

Os ministros consideraram que todos os artigos da lei — que vinham tendo interpretações divergentes por juízes e Tribunais — estão de acordo com o princípio fundamental de respeito à dignidade humana, sendo instrumento de mitigação de uma realidade de discriminação social e cultural.

O STF entendeu ainda que qualquer ação penal com base na Lei Maria da Penha deve ser processada pelo Ministério Público, mesmo sem representação da vítima.

Ou seja: a partir dessa decisão da Corte Maior do país, acabam-se as discussões acerca da necessidade de representação da vítima nos crimes de lesão corporal. Agora, se a vítima registrar ocorrência policial pelo crime de lesão corporal praticado no âmbito da Lei Maria da Penha, o Ministério Público processará o agressor independentemente da vontade posterior da vítima em ‘desistir do processo’, pois o que o STF diz é que se trata de crime de ação penal pública incondicionada – sem necessidade de representação da ofendida. Portanto, repete-se, ao tomar conhecimento do fato – agressão física com lesões corporais – o Ministério Público poderá oferecer denúncia e processar o agressor, independente da manifestação da vítima quanto à representação judicial.

Assim, pouco importa manifestação posterior da vítima em dizer que não tem mais interesse no processo, que “já fez as pazes com o agressor”, que “ele não está mais incomodando”, ou que “vai dar mais uma chance”. A partir de agora, mesmo diante de tais ponderações de cunho psicossocial, o agressor será processado, e a vítima terá de comparecer em Juízo para prestar depoimento a respeito dos fatos. E mais: caso venha a alegar perante o juiz que o fato não ocorreu, que ‘foi tudo invenção’ (no claro intuito de proteger o agressor da acusação que pesa sobre ele), será a vítima que poderá então ser processada pelo delito de denunciação caluniosa previsto no artigo 339 do Código Penal (com pena de reclusão de 2 a 8 anos).

Feitas essas ponderações, espera-se que as mulheres vítimas de violência doméstica tenham na Lei Maria da Penha a efetiva possibilidade de se libertarem de um relacionamento abusivo, agressivo – sem, contudo, utilizarem seus mecanismos de forma errônea: valendo-se da Lei por ocasião da agressão e repelindo sua proteção quando da retomada do relacionamento abusivo.

E digo isso porque é sabido que as relações violentas ocorrem de forma cíclica, como ilustra a psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen, que estuda a violência no casal há mais de quarenta anos:

A violência cíclica

Uma fase de tensão

“A violência não se manifesta diretamente, mas transparece por mímicas (silêncios hostis), atitudes (olhares agressivos), ou pelo timbre de voz (tom irritado). Tudo que a companheira faz o enerva, e ela, sentindo tal tensão, se esforça por ser carinhosa, por acalmar as coisas para que a tensão baixe. Com isso renuncia a seus próprios desejos e age de maneira a satisfazer o companheiro.

Durante essa fase de aumento da violência o homem tende a responsabilizar a mulher por suas frustrações e pelo estresse de sua vida. É evidente que as razões por ele invocadas não são mais do que um pretexto, e em momento algum a causa da violência; no entanto, a mulher se sente mesmo responsável.”

Uma fase de agressão

“na qual o homem parece ter perdido o controle sobre si mesmo. São gritos, insultos, e ameaças, e ele pode também quebrar objetos antes de agredir fisicamente.

(...) Não é raro que, nesse momento, o homem queira ter relações sexuais para melhor marcar a sua dominação.

(...) a mulher não reage, porque o terreno já vinha sendo preparado por pequenos ataques pérfidos, e ela tem medo”.

Uma fase de desculpas:

“de contrição, em que o homem busca anular ou minimizar seu comportamento.

(...) Essa fase tem por objetivo por a companheira em culpa e fazê-la esquecer sua raiva. Em geral, ela diz a si mesma que, se estiver mais atenciosa e modificar seu comportamento, evitará que seu companheiro se irrite novamente.

O homem pede perdão, jura que aquilo não vai mas acontecer, que ele vai consultar um psicólogo, que vai entrar para o AA, etc.

Se a mulher tiver finalmente conseguido ir embora, ele vai entrar em contato com a alguém próximo para que a convença a voltar.”
“Nesse momento, o homem está sendo sincero, porém isso não quer dizer que ele não vai recomeçar.

Demasiadas vezes as mulheres acreditam ingenuamente nas belas promessas feitas durante essa fase e concedem rapidamente o seu perdão.”

Uma fase de reconciliação:

Chamada também de fase de ‘lua de mel’, em que o homem adota uma atitude agradável, mostra-se repentinamente atencioso, cheio de gentileza. Ajuda nas tarefas de casa. (...) Pode até levar a mulher a crer que ela é quem tem o poder. Essa fase é por vezes interpretada com uma manipulação perversa dos homens para melhor ‘segurar’ a mulher.

Durante essa fase as mulheres voltam a ter esperanças, porque reencontram o homem encantador que as seduziu por ocasião de seu primeiro encontro.”

“Elas acreditam que vão corrigir esse homem ferido e que, com seu amor, ele vai mudar. Infelizmente, isso serve apenas para manter essa esperança na mulher e aumentar, assim, seu nível de tolerância à agressão.

É em geral, nesse momento, que ela retira sua queixa.”



Agora, no entanto, a vítima não mais poderá “retirar a queixa”, retratar-se da representação, porque a partir do momento do registro da ocorrência, é ao Ministério Público que cabe ‘meter a colher em briga de marido e mulher’.

Ivana Machado Battaglin,

Promotora de Justiça da Promotoria de Justiça Criminal de São Gabriel,

Integrante do COPEVID/GNDH (Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar do Grupo Nacional de Direitos Humanos do Ministério Público).

































sábado, 11 de fevereiro de 2012

DA POSSIBILIDADE DO MP DAR INÍCIO À AÇÃO PENAL SEM NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA - LEI MARIA DA PENHA

Comemoro a decisão do STF, de 09 de fevereiro, que demonstra o avanço da justiça brasileira para a implementação da Lei Maria da Penha.
Abaixo, a notícia extraída do site do STF:

Por maioria de votos, vencido o presidente, ministro Cezar Peluso, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente, na sessão de hoje (09), a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4424) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) quanto aos artigos 12, inciso I; 16; e 41 da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006).
A corrente majoritária da Corte acompanhou o voto do relator, ministro Marco Aurélio, no sentido da possibilidade de o Ministério Público dar início a ação penal sem necessidade de representação da vítima.
O artigo 16 da lei dispõe que as ações penais públicas “são condicionadas à representação da ofendida”, mas, para a maioria dos ministros do STF, essa circunstância acaba por esvaziar a proteção constitucional assegurada às mulheres. Também foi esclarecido que não compete aos Juizados Especiais julgar os crimes cometidos no âmbito da Lei Maria da Penha.
Ministra Rosa Weber
Primeira a acompanhar o relator, a ministra Rosa Weber afirmou que exigir da mulher agredida uma representação para a abertura da ação atenta contra a própria dignidade da pessoa humana. “Tal condicionamento implicaria privar a vítima de proteção satisfatória à sua saúde e segurança”, disse. Segundo ela, é necessário fixar que aos crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95).
Dessa forma, ela entendeu que o crime de lesão corporal leve, quando praticado com violência doméstica e familiar contra a mulher, processa-se mediante ação penal pública incondicionada.
Ministro Luiz Fux
Ao acompanhar o voto do relator quanto à possibilidade de a ação penal com base na Lei Maria da Penha ter início mesmo sem representação da vítima, o ministro Luiz Fux afirmou que não é razoável exigir-se da mulher que apresente queixa contra o companheiro num momento de total fragilidade emocional em razão da violência que sofreu.
“Sob o ângulo da tutela da dignidade da pessoa humana, que é um dos pilares da República Federativa do Brasil, exigir a necessidade da representação, no meu modo de ver, revela-se um obstáculo à efetivação desse direito fundamental porquanto a proteção resta incompleta e deficiente, mercê de revelar subjacentemente uma violência simbólica e uma afronta a essa cláusula pétrea.”
Ministro Dias Toffoli
Ao acompanhar o posicionamento do relator, o ministro Dias Toffoli salientou que o voto do ministro Marco Aurélio está ligado à realidade. O ministro afirmou que o Estado é “partícipe” da promoção da dignidade da pessoa humana, independentemente de sexo, raça e opções, conforme prevê a Constituição Federal. Assim, fundamentando seu voto no artigo 226, parágrafo 8º, no qual se preceitua que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”, o ministro Dias Toffoli acompanhou o relator.
Ministra Cármen LúciaA ministra Cármen Lúcia destacou a mudança de mentalidade pela qual passa a sociedade no que se refere aos direitos das mulheres. Citando ditados anacrônicos – como, “em briga de marido e mulher, não se mete a colher” e “o que se passa na cama é segredo de quem ama” –, ela afirmou que é dever do Estado adentrar ao recinto das “quatro paredes” quando na relação conjugal que se desenrola ali houver violência.
Para ela, discussões como a de hoje no Plenário do STF são importantíssimas nesse processo. “A interpretação que agora se oferece para conformar a norma à Constituição me parece basear-se exatamente na proteção maior à mulher e na possibilidade, portanto, de se dar cobro à efetividade da obrigação do Estado de coibir qualquer violência doméstica. E isso que hoje se fala, com certo eufemismo e com certo cuidado, de que nós somos mais vulneráveis, não é bem assim. Na verdade, as mulheres não são vulneráveis, mas sim maltratadas, são mulheres sofridas”, asseverou.
Ministro Ricardo Lewandowski
Ao acompanhar o relator, o ministro Ricardo Lewandowski chamou atenção para aspectos em torno do fenômeno conhecido como “vício da vontade” e salientou a importância de se permitir a abertura da ação penal independentemente de a vítima prestar queixa. “Penso que estamos diante de um fenômeno psicológico e jurídico, que os juristas denominam de vício da vontade, e que é conhecido e estudado desde os antigos romanos. As mulheres, como está demonstrado estatisticamente, não representam criminalmente contra o companheiro ou marido em razão da permanente coação moral e física que sofrem e que inibe a sua livre manifestação da vontade”, finalizou.
Ministro Gilmar Mendes
Mesmo afirmando ter dificuldade em saber se a melhor forma de proteger a mulher é a ação penal pública condicionada à representação da agredida ou a ação incondicionada, o ministro Gilmar Mendes acompanhou o relator. Segundo ele, em muitos casos a ação penal incondicionada poderá ser um elemento de tensão e desagregação familiar. “Mas como estamos aqui fixando uma interpretação que, eventualmente, declarando (a norma) constitucional, poderemos rever, diante inclusive de fatos, vou acompanhar o relator”, disse.
Ministro Joaquim Barbosa
O ministro Joaquim Barbosa, por sua vez, afirmou que a Constituição Federal trata de certos grupos sociais ao reconhecer que eles estão em situação de vulnerabilidade. Para ele, quando o legislador, em benefício desses grupos, edita uma lei que acaba se revelando ineficiente, é dever do Supremo, levando em consideração dados sociais, rever as políticas no sentido da proteção. “É o que ocorre aqui”, concluiu.
Ministro Ayres BrittoPara o ministro Ayres Britto, em um contexto patriarcal e machista, a mulher agredida tende a condescender com o agressor. “A proposta do relator no sentido de afastar a obrigatoriedade da representação da agredida como condição de propositura da ação penal pública me parece rimar com a Constituição”, concluiu.
Ministro Celso de Mello
O decano do Supremo, ministro Celso de Mello, também acompanhou o relator. “Estamos interpretando a lei segundo a Constituição e, sob esse aspecto, o ministro-relator deixou claramente estabelecido o significado da exclusão dos atos de violência doméstica e familiar contra a mulher do âmbito normativo da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), com todas as consequências, não apenas no plano processual, mas também no plano material”, disse.
Para o ministro Celso de Mello, a Lei Maria da Penha é tão importante que, como foi salientado durante o julgamento, é fundamental que se dê atenção ao artigo 226, parágrafo 8º, da Constituição Federal, que prevê a prevenção da violência doméstica e familiar pelo Estado.
Ministro Cezar Peluso
Único a divergir do relator, o presidente do STF, ministro Cezar Peluso, advertiu para os riscos que a decisão de hoje pode causar na sociedade brasileira porque não é apenas a doutrina jurídica que se encontra dividida quanto ao alcance da Lei Maria da Penha. Citando estudos de várias associações da sociedade civil e também do IPEA, o presidente do STF apontou as conclusões acerca de uma eventual conveniência de se permitir que os crimes cometidos no âmbito da lei sejam processados e julgados pelos Juizados Especiais, em razão da maior celeridade de suas decisões.
“Sabemos que a celeridade é um dos ingredientes importantes no combate à violência, isto é, quanto mais rápida for a decisão da causa, maior será sua eficácia. Além disso, a oralidade ínsita aos Juizados Especiais é outro fator importantíssimo porque essa violência se manifesta no seio da entidade familiar. Fui juiz de Família por oito anos e sei muito bem como essas pessoas interagem na presença do magistrado. Vemos que há vários aspectos que deveriam ser considerados para a solução de um problema de grande complexidade como este”, salientou.
Quanto ao entendimento majoritário que permitirá o início da ação penal mesmo que a vítima não tenha a iniciativa de denunciar o companheiro-agressor, o ministro Peluso advertiu que, se o caráter condicionado da ação foi inserido na lei, houve motivos justificados para isso. “Não posso supor que o legislador tenha sido leviano ao estabelecer o caráter condicionado da ação penal. Ele deve ter levado em consideração, com certeza, elementos trazidos por pessoas da área da sociologia e das relações humanas, inclusive por meio de audiências públicas, que apresentaram dados capazes de justificar essa concepção da ação penal”, disse.
Ao analisar os efeitos práticos da decisão, o presidente do STF afirmou que é preciso respeitar o direito das mulheres que optam por não apresentar queixas contra seus companheiros quando sofrem algum tipo de agressão. “Isso significa o exercício do núcleo substancial da dignidade da pessoa humana, que é a responsabilidade do ser humano pelo seu destino. O cidadão é o sujeito de sua história, é dele a capacidade de se decidir por um caminho, e isso me parece que transpareceu nessa norma agora contestada”, salientou. O ministro citou como exemplo a circunstância em que a ação penal tenha se iniciado e o casal, depois de feitas as pazes, seja surpreendido por uma condenação penal.
RR,VP/AD