Às vésperas de se comemorar o dia internacional da mulher, em 08 de março, temos outro fato a festejar: a recente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no dia 09 de fevereiro, que por unanimidade, afirmou a validade constitucional da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006).
A decisão, em suma, confirmou que a lei não ofende o princípio da isonomia (entre homens e mulheres) ao criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, que é “eminentemente vulnerável quando se trata de constrangimentos físicos, morais e psicológicos sofridos em âmbito privado”.
Os ministros consideraram que todos os artigos da lei — que vinham tendo interpretações divergentes por juízes e Tribunais — estão de acordo com o princípio fundamental de respeito à dignidade humana, sendo instrumento de mitigação de uma realidade de discriminação social e cultural.
O STF entendeu ainda que qualquer ação penal com base na Lei Maria da Penha deve ser processada pelo Ministério Público, mesmo sem representação da vítima.
Ou seja: a partir dessa decisão da Corte Maior do país, acabam-se as discussões acerca da necessidade de representação da vítima nos crimes de lesão corporal. Agora, se a vítima registrar ocorrência policial pelo crime de lesão corporal praticado no âmbito da Lei Maria da Penha, o Ministério Público processará o agressor independentemente da vontade posterior da vítima em ‘desistir do processo’, pois o que o STF diz é que se trata de crime de ação penal pública incondicionada – sem necessidade de representação da ofendida. Portanto, repete-se, ao tomar conhecimento do fato – agressão física com lesões corporais – o Ministério Público poderá oferecer denúncia e processar o agressor, independente da manifestação da vítima quanto à representação judicial.
Assim, pouco importa manifestação posterior da vítima em dizer que não tem mais interesse no processo, que “já fez as pazes com o agressor”, que “ele não está mais incomodando”, ou que “vai dar mais uma chance”. A partir de agora, mesmo diante de tais ponderações de cunho psicossocial, o agressor será processado, e a vítima terá de comparecer em Juízo para prestar depoimento a respeito dos fatos. E mais: caso venha a alegar perante o juiz que o fato não ocorreu, que ‘foi tudo invenção’ (no claro intuito de proteger o agressor da acusação que pesa sobre ele), será a vítima que poderá então ser processada pelo delito de denunciação caluniosa previsto no artigo 339 do Código Penal (com pena de reclusão de 2 a 8 anos).
Feitas essas ponderações, espera-se que as mulheres vítimas de violência doméstica tenham na Lei Maria da Penha a efetiva possibilidade de se libertarem de um relacionamento abusivo, agressivo – sem, contudo, utilizarem seus mecanismos de forma errônea: valendo-se da Lei por ocasião da agressão e repelindo sua proteção quando da retomada do relacionamento abusivo.
E digo isso porque é sabido que as relações violentas ocorrem de forma cíclica, como ilustra a psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen, que estuda a violência no casal há mais de quarenta anos:
A violência cíclica
Uma fase de tensão
“A violência não se manifesta diretamente, mas transparece por mímicas (silêncios hostis), atitudes (olhares agressivos), ou pelo timbre de voz (tom irritado). Tudo que a companheira faz o enerva, e ela, sentindo tal tensão, se esforça por ser carinhosa, por acalmar as coisas para que a tensão baixe. Com isso renuncia a seus próprios desejos e age de maneira a satisfazer o companheiro.
Durante essa fase de aumento da violência o homem tende a responsabilizar a mulher por suas frustrações e pelo estresse de sua vida. É evidente que as razões por ele invocadas não são mais do que um pretexto, e em momento algum a causa da violência; no entanto, a mulher se sente mesmo responsável.”
Uma fase de agressão
“na qual o homem parece ter perdido o controle sobre si mesmo. São gritos, insultos, e ameaças, e ele pode também quebrar objetos antes de agredir fisicamente.
(...) Não é raro que, nesse momento, o homem queira ter relações sexuais para melhor marcar a sua dominação.
(...) a mulher não reage, porque o terreno já vinha sendo preparado por pequenos ataques pérfidos, e ela tem medo”.
Uma fase de desculpas:
“de contrição, em que o homem busca anular ou minimizar seu comportamento.
(...) Essa fase tem por objetivo por a companheira em culpa e fazê-la esquecer sua raiva. Em geral, ela diz a si mesma que, se estiver mais atenciosa e modificar seu comportamento, evitará que seu companheiro se irrite novamente.
O homem pede perdão, jura que aquilo não vai mas acontecer, que ele vai consultar um psicólogo, que vai entrar para o AA, etc.
Se a mulher tiver finalmente conseguido ir embora, ele vai entrar em contato com a alguém próximo para que a convença a voltar.”
“Nesse momento, o homem está sendo sincero, porém isso não quer dizer que ele não vai recomeçar.
Demasiadas vezes as mulheres acreditam ingenuamente nas belas promessas feitas durante essa fase e concedem rapidamente o seu perdão.”
Uma fase de reconciliação:
Chamada também de fase de ‘lua de mel’, em que o homem adota uma atitude agradável, mostra-se repentinamente atencioso, cheio de gentileza. Ajuda nas tarefas de casa. (...) Pode até levar a mulher a crer que ela é quem tem o poder. Essa fase é por vezes interpretada com uma manipulação perversa dos homens para melhor ‘segurar’ a mulher.
Durante essa fase as mulheres voltam a ter esperanças, porque reencontram o homem encantador que as seduziu por ocasião de seu primeiro encontro.”
“Elas acreditam que vão corrigir esse homem ferido e que, com seu amor, ele vai mudar. Infelizmente, isso serve apenas para manter essa esperança na mulher e aumentar, assim, seu nível de tolerância à agressão.
É em geral, nesse momento, que ela retira sua queixa.”
Agora, no entanto, a vítima não mais poderá “retirar a queixa”, retratar-se da representação, porque a partir do momento do registro da ocorrência, é ao Ministério Público que cabe ‘meter a colher em briga de marido e mulher’.
Ivana Machado Battaglin,
Promotora de Justiça da Promotoria de Justiça Criminal de São Gabriel,
Integrante do COPEVID/GNDH (Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar do Grupo Nacional de Direitos Humanos do Ministério Público).
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