sábado, 17 de março de 2012

Discurso proferido por ocasião do lançamento da Cartilha Nacional "O Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher: Uma Construção Coletiva", do COPEVID/GNDH




Eu tenho uma espécie de dever, dever de sonhar, de sonhar sempre, pois sendo mais do que uma mera expectadora de mim mesma, eu tenho que ter o melhor espetáculo que posso.



Emprestando a poesia de Fernando Pessoa eu já anuncio, senhoras e senhores, que estou em busca da realização do sonho do fim da violência doméstica, aquela mesma inserta no § 8o do art. 226 da Constituição Federal, o qual diz que  “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”,  e finalmente implementada pela cognominada Lei Maria da Penha.



Sonho com a igualdade já preconizada por Aristóteles, e repetida por Rui Barbosa, segundo o qual a “regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. (...) Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real.”



E para isso veio a lei Maria da Penha, com disposições que contemplam essa desigualdade histórica criando mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, e  ainda estabelecendo medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.



Alguns criticam a Lei, resistem a ela. Inclusive, e principalmente, os operadores do direito – aqueles que tem o dever de implementá-la. Impregnados pela cultura, que impôs à mulher um papel de menos valia ao longo da história, acabam por considerar que as disposições da Lei Maria da Penha, considerada pela ONU como uma das leis mais avançadas do mundo, fere o princípio da igualdade entre homens e mulheres.



Parece que estamos num mundo ao avesso, como o relatado por Galeano em seu livro “De pernas para o ar – a Escola do Mundo ao Avesso”.

Fala ele no citado livro:

O mundo ao avesso nos ensina a padecer a realidade ao invés de transformá-la, a esquecer o passado ao invés de escutá-lo e a aceitar o futuro ao invés de imaginá-lo: assim pratica o crime, assim o recomenda. Em sua escola, escola do crime, são obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e resignação. Mas está visto que não há desgraça sem graça, nem cara que não tenha sua coroa, nem desalento que não busque seu alento. Nem tampouco há escola que não encontre sua contra-escola.”

Façamos, pois, a nossa escola para ‘desvirar’ esse mundo que anda de pernas para o ar, onde a violência impera nos lares e, então, transborda nas ruas, porque produz famílias doentes, crianças e jovens delinqüentes.

Ainda Galeano, no capítulo do mesmo livro, intitulado “Curso Básico de Racismo e Machismo”, chama atenção ao fato de que antes mesmo da inquisição dedicar um manual inteiro, da primeira à última página, à justificação do castigo da mulher e à demonstração de sua inferioridade biológica, já haviam sido elas “longamente maltratadas na bíblia e na mitologia grega, desde os tempos em que a tolice de Eva fez com que Deus nos expulsasse do paraíso e a imprudência de Pandora abriu a caixa que encheu o mundo de desgraças. ‘A cabeça da mulher é o homem’, explicava São Paulo aos Coríntios, e dezenove séculos depois  Gustave Le Bon, um dos fundadores da psicologia social, pode concluir que uma mulher inteligente é algo tão raro quando um gorila de duas cabeças”. Não se espantem, senhoras e senhores, pois tem mais: “Charles Darwin reconhecia algumas virtudes femininas, como a intuição, mas eram ‘virtudes características das raças inferiores’.”

Mas isso tudo, que parece tão absurdo, e tão distante historicamente, não está apartado na nossa atualidade.

“No mundo de hoje, nascer menina é um risco”, adverte a diretora da UNICEF. E denuncia a violência e a discriminação que a mulher sofre, no mundo todo, a despeito das conquistas dos movimentos feministas no mundo todo. Em 1995, em Pequim, a Conferência Internacional sobre os Direitos das Mulheres revelou que, no mundo atual, elas ganham a terça parte do que ganham os homens por trabalho igual. De cada dez pobres, sete são mulheres. De cada cem mulheres, apenas uma é proprietária de algo.”

Voa torta a humanidade, pássaro de uma asa só.

E prossegue Eduardo Galeano:

“Nos parlamentos, em média, há uma mulher para cada dez legisladores, e em alguns parlamentos não há nenhuma. Se reconhece à mulher certa utilidade em casa, na fábrica ou no escritório e até se admite que possa ser imprescindível na cama ou na cozinha, mas o espaço público é virtualmente monopolizado pelos machos, nascidos para as lidas do poder e da guerra. Carol Bellany, que encabeça a agência UNICEF das Nações Unidas, é um caso raro. As Nações Unidas pregam o direito á igualdade, mas não o praticam: no mais alto nível, onde são tomadas as decisões, os homens ocupam oito de cada dez cargos no máximo organismo internacional.”

Ainda temos muito a andar. Mesmo num país onde a Presidência da República é ocupada por uma mulher, e nos cargos públicos cada vez mais as mulheres ocupam seu espaço, mostrando não só sua propalada delicadeza e sensibilidade, mas sobretudo sua força, ainda é longo o caminho a se trilhar na busca da verdadeira justiça.

E digo isso porque, ao sonhar a igualdade material entre homens e mulheres, e com isso o fim da violência contras as mulheres e meninas, sonho nada mais do que justiça, aquela que, nas palavras do mestre Saramago, não deverá esquecer-se de que é, acima de tudo, restituição, restituição de direitos. Todos eles, começando pelo direito elementar de viver dignamente. Se a mim me mandassem dispor por ordem de precedência a caridade, a justiça e a bondade, daria o primeiro lugar à bondade, o segundo à justiça e o terceiro à caridade. Porque a bondade, por si só, já dispensa a justiça e a caridade, porque a justiça justa já contém em si caridade suficiente. A caridade é o que resta quando não há bondade nem justiça.”

E esse sonho por justiça, igualdade e concretização de direitos, tem sido buscado no trabalho junto à Comissão Permanente de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – COPEVID, que integra o Grupo Nacional de Direitos Humanos – GNDH -, este formado por Promotores e Promotoras de Justiça de todo o país. Como membro integrante da COPEVID, ao lado da querida colega Veleda Dobke, é que hoje estamos todos aqui para o lançamento da cartilha que marca o trabalho de aproximadamente um ano, por parte de todos os seus integrantes. Uma cartilha destinada aos multiplicadores, parceiros na luta contra a violência doméstica e familiar contra a mulher, que é justamente uma CONSTRUÇÃO COLETIVA.

E agradecendo a presença de todas as senhoras e os senhores, concito-vos a construir esse sonho, transformar a  realidade, e com urgência.

Para finalizar, valho-me do poeta russo Maiakóviski:

Por enquanto
                    há escória
                                    de sobra.
0 tempo é escasso -
                              mãos à obra.
Primeiro
             é preciso
                           transformar a vida,
para cantá-la -
                      em seguida.


São Gabriel, 16 de março de 2012.

Ivana machado Battaglin,
Promotora de Justiça da Promotoria de Justiça Criminal de São Gabriel
Membro integrante do COPEVID/GNDH