segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Violência doméstica e concretização dos direitos

Dada a relevância da questão posta em debate, transcrevo, abaixo, o artigo originalmente publicado na intranet- MPRS, da lavra do Promotor de Justiça Vinicius de Melo Lima. Excelente artigo:

O debate em torno da constitucionalidade da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) trouxe a lume as relações intrincadas e tortuosas de famílias nas quais predomina a violência contra a mulher.
A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal conferiu interpretação conforme a Constituição aos artigos 12, inciso I, 16 e 41 do diploma legal em comento, afastando a necessidade de representação para o desencadeamento da persecução penal.

Com efeito, sendo a ação penal pública incondicionada, a vítima deixa de assumir uma posição antagônica frente ao agressor, competindo ao Estado (Ministério Público) a proteção dos direitos fundamentais da mulher em situação de violência doméstica. Nessa linha de entendimento, a Corte assentou a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, bem como a incidência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da proibição da proteção insuficiente, haja vista que expressiva quantidade de casos resultava em arquivamento diante da renúncia ao direito de representação por parte da ofendida.

Merece relevo, pois, que em casos tais está-se, em realidade, diante de relações pautadas pelo sentimento de poder ou de posse, relegando-se o afeto para um plano inferior, com prejuízos à estruturação do complexo familiar. Não raras vezes, a mulher, pressionada pelo agressor, acabava renunciando à representação, por razões diversificadas (dependência financeira, filhos em tenra idade, esperança de mudança de comportamento por parte do companheiro/marido agressor, etc.).

Afigura-se como corolário da hermenêutica constitucional a concretização dos direitos humanos e fundamentais, em todas as suas dimensões, sendo que não há discricionariedade imune a controle. Dito de outro modo, não há liberdade para que o intérprete confira interpretação ao texto de acordo com as suas convicções pessoais, de maneira divorciada do sentimento constitucional (Verdú).

Se a família goza de proteção por parte do Estado (artigo 226, § 8º, da Carta da República), a interpretação da legislação de regência deve percorrer o caminho da concretização constitucionalizante, sob pena de se conviver com uma Constituição meramente simbólica (Neves), abrindo um verdadeiro fosso ou abismo entre a previsão formal e o mundo da vida.

Ora, a compreensão da violência de gênero como um problema de direitos fundamentais conduz à superação de pré-juízos inautênticos (Gadamer), calcados no denominado “senso comum teórico” dos juristas (Warat), a depositar crença quase inarredável em falácias tais como “em briga de marido e mulher não se mete a colher” ou “bateu sim, mas foi na mulher dele”, espalhadas pelo imaginário coletivo.


Há quem ainda sustente, não obstante a decisão do Pretório Excelso, que, em relação ao crime de ameaça, ainda prevaleceria a necessidade de representação para a propositura da ação penal. Tal leitura não está em consonância com o entendimento da Corte e com o dever de proteção aos direitos fundamentais, haja vista a amplitude do conceito de violência contra a mulher e suas várias formas, incluindo-se a violência psicológica.

Não bastasse isso, impõe-se a adoção da teoria do diálogo das fontes, desenvolvida por Erik Jaime, apontando para um diálogo entre a Lei Maria da Penha e o Estatuto da Criança e do Adolescente, porquanto ambos os diplomas legais protegem a família e estão alicerçados no princípio da igualdade material. Consoante a lição de Aristóteles, atualizada por Rui Barbosa a igualdade significa tratar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam. Um ato de violência contra a mulher, presenciado de maneira sistemática pelos filhos, dentro do ambiente doméstico, traz sérias consequências ao processo de formação e desenvolvimento psicossocial de crianças e adolescentes. A tendência natural, por óbvio, é a reprodução da violência como uma manifestação que decorre das práticas vivenciadas a aprendidas entre quatro paredes, afinal, “sempre foi assim”!

É justamente esse “caldo de cultura” de violência que impõe uma reflexão por parte dos atores sociais e do Sistema de Justiça, no sentido da promoção de uma ruptura com a vergonha, com o silêncio, a partir da compreensão da violência doméstica como um problema não apenas de “marido e mulher”, mas sim, um problema comunitário e, sobretudo, um problema de direitos fundamentais.

No cenário jurídico, há um ranço positivista no que tange à aceitação passiva das fontes sociais do Direito, dentre elas o costume, de modo a se legitimar práticas que ofendem os direitos fundamentais. Se a violência é fruto do costume de uma sociedade patriarcal e que se move por uma lógica de dominação, não há o avanço ou a denominada função promocional ou precursora de valores por parte do Direito (Bobbio).

O paradoxo de apontar para o futuro, com instrumentos normativos pretéritos (ex. fontes sociais do Direito, fruto do apego ao positivismo) reforça a importância do papel da concretização constitucional na promoção e transformação da sociedade por intermédio da defesa intransigente dos direitos humanos e fundamentais.

Por conseguinte, é de se registrar que, na atual quadra vivida, o Direito possui inequívoca dimensão temporal e deve render-se à dinamicidade da vida em toda a sua plenitude, vida do ser que somente se completa na sua relação com o outro (Heidegger). A essência do compartilhar, do comunicar-se, enfim, do ser-com, depende da comunhão entre o texto e a realidade na caminhada rumo à produção de sentido (norma).

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