segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Violência doméstica e concretização dos direitos

Dada a relevância da questão posta em debate, transcrevo, abaixo, o artigo originalmente publicado na intranet- MPRS, da lavra do Promotor de Justiça Vinicius de Melo Lima. Excelente artigo:

O debate em torno da constitucionalidade da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) trouxe a lume as relações intrincadas e tortuosas de famílias nas quais predomina a violência contra a mulher.
A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal conferiu interpretação conforme a Constituição aos artigos 12, inciso I, 16 e 41 do diploma legal em comento, afastando a necessidade de representação para o desencadeamento da persecução penal.

Com efeito, sendo a ação penal pública incondicionada, a vítima deixa de assumir uma posição antagônica frente ao agressor, competindo ao Estado (Ministério Público) a proteção dos direitos fundamentais da mulher em situação de violência doméstica. Nessa linha de entendimento, a Corte assentou a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, bem como a incidência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da proibição da proteção insuficiente, haja vista que expressiva quantidade de casos resultava em arquivamento diante da renúncia ao direito de representação por parte da ofendida.

Merece relevo, pois, que em casos tais está-se, em realidade, diante de relações pautadas pelo sentimento de poder ou de posse, relegando-se o afeto para um plano inferior, com prejuízos à estruturação do complexo familiar. Não raras vezes, a mulher, pressionada pelo agressor, acabava renunciando à representação, por razões diversificadas (dependência financeira, filhos em tenra idade, esperança de mudança de comportamento por parte do companheiro/marido agressor, etc.).

Afigura-se como corolário da hermenêutica constitucional a concretização dos direitos humanos e fundamentais, em todas as suas dimensões, sendo que não há discricionariedade imune a controle. Dito de outro modo, não há liberdade para que o intérprete confira interpretação ao texto de acordo com as suas convicções pessoais, de maneira divorciada do sentimento constitucional (Verdú).

Se a família goza de proteção por parte do Estado (artigo 226, § 8º, da Carta da República), a interpretação da legislação de regência deve percorrer o caminho da concretização constitucionalizante, sob pena de se conviver com uma Constituição meramente simbólica (Neves), abrindo um verdadeiro fosso ou abismo entre a previsão formal e o mundo da vida.

Ora, a compreensão da violência de gênero como um problema de direitos fundamentais conduz à superação de pré-juízos inautênticos (Gadamer), calcados no denominado “senso comum teórico” dos juristas (Warat), a depositar crença quase inarredável em falácias tais como “em briga de marido e mulher não se mete a colher” ou “bateu sim, mas foi na mulher dele”, espalhadas pelo imaginário coletivo.


Há quem ainda sustente, não obstante a decisão do Pretório Excelso, que, em relação ao crime de ameaça, ainda prevaleceria a necessidade de representação para a propositura da ação penal. Tal leitura não está em consonância com o entendimento da Corte e com o dever de proteção aos direitos fundamentais, haja vista a amplitude do conceito de violência contra a mulher e suas várias formas, incluindo-se a violência psicológica.

Não bastasse isso, impõe-se a adoção da teoria do diálogo das fontes, desenvolvida por Erik Jaime, apontando para um diálogo entre a Lei Maria da Penha e o Estatuto da Criança e do Adolescente, porquanto ambos os diplomas legais protegem a família e estão alicerçados no princípio da igualdade material. Consoante a lição de Aristóteles, atualizada por Rui Barbosa a igualdade significa tratar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam. Um ato de violência contra a mulher, presenciado de maneira sistemática pelos filhos, dentro do ambiente doméstico, traz sérias consequências ao processo de formação e desenvolvimento psicossocial de crianças e adolescentes. A tendência natural, por óbvio, é a reprodução da violência como uma manifestação que decorre das práticas vivenciadas a aprendidas entre quatro paredes, afinal, “sempre foi assim”!

É justamente esse “caldo de cultura” de violência que impõe uma reflexão por parte dos atores sociais e do Sistema de Justiça, no sentido da promoção de uma ruptura com a vergonha, com o silêncio, a partir da compreensão da violência doméstica como um problema não apenas de “marido e mulher”, mas sim, um problema comunitário e, sobretudo, um problema de direitos fundamentais.

No cenário jurídico, há um ranço positivista no que tange à aceitação passiva das fontes sociais do Direito, dentre elas o costume, de modo a se legitimar práticas que ofendem os direitos fundamentais. Se a violência é fruto do costume de uma sociedade patriarcal e que se move por uma lógica de dominação, não há o avanço ou a denominada função promocional ou precursora de valores por parte do Direito (Bobbio).

O paradoxo de apontar para o futuro, com instrumentos normativos pretéritos (ex. fontes sociais do Direito, fruto do apego ao positivismo) reforça a importância do papel da concretização constitucional na promoção e transformação da sociedade por intermédio da defesa intransigente dos direitos humanos e fundamentais.

Por conseguinte, é de se registrar que, na atual quadra vivida, o Direito possui inequívoca dimensão temporal e deve render-se à dinamicidade da vida em toda a sua plenitude, vida do ser que somente se completa na sua relação com o outro (Heidegger). A essência do compartilhar, do comunicar-se, enfim, do ser-com, depende da comunhão entre o texto e a realidade na caminhada rumo à produção de sentido (norma).

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

EM BRIGA DE MARIDO E MULHER, O MINISTÉRIO PÚBLICO PODE, E DEVE, METER A COLHER

Às vésperas de se comemorar o dia internacional da mulher, em 08 de março, temos outro fato a festejar: a recente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no dia 09 de fevereiro, que por unanimidade, afirmou a validade constitucional da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006).

A decisão, em suma, confirmou que a lei não ofende o princípio da isonomia (entre homens e mulheres) ao criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, que é “eminentemente vulnerável quando se trata de constrangimentos físicos, morais e psicológicos sofridos em âmbito privado”.

Os ministros consideraram que todos os artigos da lei — que vinham tendo interpretações divergentes por juízes e Tribunais — estão de acordo com o princípio fundamental de respeito à dignidade humana, sendo instrumento de mitigação de uma realidade de discriminação social e cultural.

O STF entendeu ainda que qualquer ação penal com base na Lei Maria da Penha deve ser processada pelo Ministério Público, mesmo sem representação da vítima.

Ou seja: a partir dessa decisão da Corte Maior do país, acabam-se as discussões acerca da necessidade de representação da vítima nos crimes de lesão corporal. Agora, se a vítima registrar ocorrência policial pelo crime de lesão corporal praticado no âmbito da Lei Maria da Penha, o Ministério Público processará o agressor independentemente da vontade posterior da vítima em ‘desistir do processo’, pois o que o STF diz é que se trata de crime de ação penal pública incondicionada – sem necessidade de representação da ofendida. Portanto, repete-se, ao tomar conhecimento do fato – agressão física com lesões corporais – o Ministério Público poderá oferecer denúncia e processar o agressor, independente da manifestação da vítima quanto à representação judicial.

Assim, pouco importa manifestação posterior da vítima em dizer que não tem mais interesse no processo, que “já fez as pazes com o agressor”, que “ele não está mais incomodando”, ou que “vai dar mais uma chance”. A partir de agora, mesmo diante de tais ponderações de cunho psicossocial, o agressor será processado, e a vítima terá de comparecer em Juízo para prestar depoimento a respeito dos fatos. E mais: caso venha a alegar perante o juiz que o fato não ocorreu, que ‘foi tudo invenção’ (no claro intuito de proteger o agressor da acusação que pesa sobre ele), será a vítima que poderá então ser processada pelo delito de denunciação caluniosa previsto no artigo 339 do Código Penal (com pena de reclusão de 2 a 8 anos).

Feitas essas ponderações, espera-se que as mulheres vítimas de violência doméstica tenham na Lei Maria da Penha a efetiva possibilidade de se libertarem de um relacionamento abusivo, agressivo – sem, contudo, utilizarem seus mecanismos de forma errônea: valendo-se da Lei por ocasião da agressão e repelindo sua proteção quando da retomada do relacionamento abusivo.

E digo isso porque é sabido que as relações violentas ocorrem de forma cíclica, como ilustra a psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen, que estuda a violência no casal há mais de quarenta anos:

A violência cíclica

Uma fase de tensão

“A violência não se manifesta diretamente, mas transparece por mímicas (silêncios hostis), atitudes (olhares agressivos), ou pelo timbre de voz (tom irritado). Tudo que a companheira faz o enerva, e ela, sentindo tal tensão, se esforça por ser carinhosa, por acalmar as coisas para que a tensão baixe. Com isso renuncia a seus próprios desejos e age de maneira a satisfazer o companheiro.

Durante essa fase de aumento da violência o homem tende a responsabilizar a mulher por suas frustrações e pelo estresse de sua vida. É evidente que as razões por ele invocadas não são mais do que um pretexto, e em momento algum a causa da violência; no entanto, a mulher se sente mesmo responsável.”

Uma fase de agressão

“na qual o homem parece ter perdido o controle sobre si mesmo. São gritos, insultos, e ameaças, e ele pode também quebrar objetos antes de agredir fisicamente.

(...) Não é raro que, nesse momento, o homem queira ter relações sexuais para melhor marcar a sua dominação.

(...) a mulher não reage, porque o terreno já vinha sendo preparado por pequenos ataques pérfidos, e ela tem medo”.

Uma fase de desculpas:

“de contrição, em que o homem busca anular ou minimizar seu comportamento.

(...) Essa fase tem por objetivo por a companheira em culpa e fazê-la esquecer sua raiva. Em geral, ela diz a si mesma que, se estiver mais atenciosa e modificar seu comportamento, evitará que seu companheiro se irrite novamente.

O homem pede perdão, jura que aquilo não vai mas acontecer, que ele vai consultar um psicólogo, que vai entrar para o AA, etc.

Se a mulher tiver finalmente conseguido ir embora, ele vai entrar em contato com a alguém próximo para que a convença a voltar.”
“Nesse momento, o homem está sendo sincero, porém isso não quer dizer que ele não vai recomeçar.

Demasiadas vezes as mulheres acreditam ingenuamente nas belas promessas feitas durante essa fase e concedem rapidamente o seu perdão.”

Uma fase de reconciliação:

Chamada também de fase de ‘lua de mel’, em que o homem adota uma atitude agradável, mostra-se repentinamente atencioso, cheio de gentileza. Ajuda nas tarefas de casa. (...) Pode até levar a mulher a crer que ela é quem tem o poder. Essa fase é por vezes interpretada com uma manipulação perversa dos homens para melhor ‘segurar’ a mulher.

Durante essa fase as mulheres voltam a ter esperanças, porque reencontram o homem encantador que as seduziu por ocasião de seu primeiro encontro.”

“Elas acreditam que vão corrigir esse homem ferido e que, com seu amor, ele vai mudar. Infelizmente, isso serve apenas para manter essa esperança na mulher e aumentar, assim, seu nível de tolerância à agressão.

É em geral, nesse momento, que ela retira sua queixa.”



Agora, no entanto, a vítima não mais poderá “retirar a queixa”, retratar-se da representação, porque a partir do momento do registro da ocorrência, é ao Ministério Público que cabe ‘meter a colher em briga de marido e mulher’.

Ivana Machado Battaglin,

Promotora de Justiça da Promotoria de Justiça Criminal de São Gabriel,

Integrante do COPEVID/GNDH (Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar do Grupo Nacional de Direitos Humanos do Ministério Público).

































sábado, 11 de fevereiro de 2012

DA POSSIBILIDADE DO MP DAR INÍCIO À AÇÃO PENAL SEM NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA - LEI MARIA DA PENHA

Comemoro a decisão do STF, de 09 de fevereiro, que demonstra o avanço da justiça brasileira para a implementação da Lei Maria da Penha.
Abaixo, a notícia extraída do site do STF:

Por maioria de votos, vencido o presidente, ministro Cezar Peluso, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente, na sessão de hoje (09), a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4424) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) quanto aos artigos 12, inciso I; 16; e 41 da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006).
A corrente majoritária da Corte acompanhou o voto do relator, ministro Marco Aurélio, no sentido da possibilidade de o Ministério Público dar início a ação penal sem necessidade de representação da vítima.
O artigo 16 da lei dispõe que as ações penais públicas “são condicionadas à representação da ofendida”, mas, para a maioria dos ministros do STF, essa circunstância acaba por esvaziar a proteção constitucional assegurada às mulheres. Também foi esclarecido que não compete aos Juizados Especiais julgar os crimes cometidos no âmbito da Lei Maria da Penha.
Ministra Rosa Weber
Primeira a acompanhar o relator, a ministra Rosa Weber afirmou que exigir da mulher agredida uma representação para a abertura da ação atenta contra a própria dignidade da pessoa humana. “Tal condicionamento implicaria privar a vítima de proteção satisfatória à sua saúde e segurança”, disse. Segundo ela, é necessário fixar que aos crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95).
Dessa forma, ela entendeu que o crime de lesão corporal leve, quando praticado com violência doméstica e familiar contra a mulher, processa-se mediante ação penal pública incondicionada.
Ministro Luiz Fux
Ao acompanhar o voto do relator quanto à possibilidade de a ação penal com base na Lei Maria da Penha ter início mesmo sem representação da vítima, o ministro Luiz Fux afirmou que não é razoável exigir-se da mulher que apresente queixa contra o companheiro num momento de total fragilidade emocional em razão da violência que sofreu.
“Sob o ângulo da tutela da dignidade da pessoa humana, que é um dos pilares da República Federativa do Brasil, exigir a necessidade da representação, no meu modo de ver, revela-se um obstáculo à efetivação desse direito fundamental porquanto a proteção resta incompleta e deficiente, mercê de revelar subjacentemente uma violência simbólica e uma afronta a essa cláusula pétrea.”
Ministro Dias Toffoli
Ao acompanhar o posicionamento do relator, o ministro Dias Toffoli salientou que o voto do ministro Marco Aurélio está ligado à realidade. O ministro afirmou que o Estado é “partícipe” da promoção da dignidade da pessoa humana, independentemente de sexo, raça e opções, conforme prevê a Constituição Federal. Assim, fundamentando seu voto no artigo 226, parágrafo 8º, no qual se preceitua que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”, o ministro Dias Toffoli acompanhou o relator.
Ministra Cármen LúciaA ministra Cármen Lúcia destacou a mudança de mentalidade pela qual passa a sociedade no que se refere aos direitos das mulheres. Citando ditados anacrônicos – como, “em briga de marido e mulher, não se mete a colher” e “o que se passa na cama é segredo de quem ama” –, ela afirmou que é dever do Estado adentrar ao recinto das “quatro paredes” quando na relação conjugal que se desenrola ali houver violência.
Para ela, discussões como a de hoje no Plenário do STF são importantíssimas nesse processo. “A interpretação que agora se oferece para conformar a norma à Constituição me parece basear-se exatamente na proteção maior à mulher e na possibilidade, portanto, de se dar cobro à efetividade da obrigação do Estado de coibir qualquer violência doméstica. E isso que hoje se fala, com certo eufemismo e com certo cuidado, de que nós somos mais vulneráveis, não é bem assim. Na verdade, as mulheres não são vulneráveis, mas sim maltratadas, são mulheres sofridas”, asseverou.
Ministro Ricardo Lewandowski
Ao acompanhar o relator, o ministro Ricardo Lewandowski chamou atenção para aspectos em torno do fenômeno conhecido como “vício da vontade” e salientou a importância de se permitir a abertura da ação penal independentemente de a vítima prestar queixa. “Penso que estamos diante de um fenômeno psicológico e jurídico, que os juristas denominam de vício da vontade, e que é conhecido e estudado desde os antigos romanos. As mulheres, como está demonstrado estatisticamente, não representam criminalmente contra o companheiro ou marido em razão da permanente coação moral e física que sofrem e que inibe a sua livre manifestação da vontade”, finalizou.
Ministro Gilmar Mendes
Mesmo afirmando ter dificuldade em saber se a melhor forma de proteger a mulher é a ação penal pública condicionada à representação da agredida ou a ação incondicionada, o ministro Gilmar Mendes acompanhou o relator. Segundo ele, em muitos casos a ação penal incondicionada poderá ser um elemento de tensão e desagregação familiar. “Mas como estamos aqui fixando uma interpretação que, eventualmente, declarando (a norma) constitucional, poderemos rever, diante inclusive de fatos, vou acompanhar o relator”, disse.
Ministro Joaquim Barbosa
O ministro Joaquim Barbosa, por sua vez, afirmou que a Constituição Federal trata de certos grupos sociais ao reconhecer que eles estão em situação de vulnerabilidade. Para ele, quando o legislador, em benefício desses grupos, edita uma lei que acaba se revelando ineficiente, é dever do Supremo, levando em consideração dados sociais, rever as políticas no sentido da proteção. “É o que ocorre aqui”, concluiu.
Ministro Ayres BrittoPara o ministro Ayres Britto, em um contexto patriarcal e machista, a mulher agredida tende a condescender com o agressor. “A proposta do relator no sentido de afastar a obrigatoriedade da representação da agredida como condição de propositura da ação penal pública me parece rimar com a Constituição”, concluiu.
Ministro Celso de Mello
O decano do Supremo, ministro Celso de Mello, também acompanhou o relator. “Estamos interpretando a lei segundo a Constituição e, sob esse aspecto, o ministro-relator deixou claramente estabelecido o significado da exclusão dos atos de violência doméstica e familiar contra a mulher do âmbito normativo da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), com todas as consequências, não apenas no plano processual, mas também no plano material”, disse.
Para o ministro Celso de Mello, a Lei Maria da Penha é tão importante que, como foi salientado durante o julgamento, é fundamental que se dê atenção ao artigo 226, parágrafo 8º, da Constituição Federal, que prevê a prevenção da violência doméstica e familiar pelo Estado.
Ministro Cezar Peluso
Único a divergir do relator, o presidente do STF, ministro Cezar Peluso, advertiu para os riscos que a decisão de hoje pode causar na sociedade brasileira porque não é apenas a doutrina jurídica que se encontra dividida quanto ao alcance da Lei Maria da Penha. Citando estudos de várias associações da sociedade civil e também do IPEA, o presidente do STF apontou as conclusões acerca de uma eventual conveniência de se permitir que os crimes cometidos no âmbito da lei sejam processados e julgados pelos Juizados Especiais, em razão da maior celeridade de suas decisões.
“Sabemos que a celeridade é um dos ingredientes importantes no combate à violência, isto é, quanto mais rápida for a decisão da causa, maior será sua eficácia. Além disso, a oralidade ínsita aos Juizados Especiais é outro fator importantíssimo porque essa violência se manifesta no seio da entidade familiar. Fui juiz de Família por oito anos e sei muito bem como essas pessoas interagem na presença do magistrado. Vemos que há vários aspectos que deveriam ser considerados para a solução de um problema de grande complexidade como este”, salientou.
Quanto ao entendimento majoritário que permitirá o início da ação penal mesmo que a vítima não tenha a iniciativa de denunciar o companheiro-agressor, o ministro Peluso advertiu que, se o caráter condicionado da ação foi inserido na lei, houve motivos justificados para isso. “Não posso supor que o legislador tenha sido leviano ao estabelecer o caráter condicionado da ação penal. Ele deve ter levado em consideração, com certeza, elementos trazidos por pessoas da área da sociologia e das relações humanas, inclusive por meio de audiências públicas, que apresentaram dados capazes de justificar essa concepção da ação penal”, disse.
Ao analisar os efeitos práticos da decisão, o presidente do STF afirmou que é preciso respeitar o direito das mulheres que optam por não apresentar queixas contra seus companheiros quando sofrem algum tipo de agressão. “Isso significa o exercício do núcleo substancial da dignidade da pessoa humana, que é a responsabilidade do ser humano pelo seu destino. O cidadão é o sujeito de sua história, é dele a capacidade de se decidir por um caminho, e isso me parece que transpareceu nessa norma agora contestada”, salientou. O ministro citou como exemplo a circunstância em que a ação penal tenha se iniciado e o casal, depois de feitas as pazes, seja surpreendido por uma condenação penal.
RR,VP/AD

domingo, 19 de junho de 2011

Notícias da reunião da COPEVID-GNDH no Espírito Santo

Devido à absoluta falta de tempo para postar no blog, e considerando a importância dos temas tratados e ações propostas por ocasião da reunião da COPEVD-GNDH que ocorreu nos dias 09 e 10 de junho passado próximo, desta vez vou 'colar' da colega Lindinalva Rodrigues, que de maneira profícua abordou todos os temas da reunião no seu site. Eis as notícias:

Nos dias 09 e 10 de junho de 2011, a Comissão Permanente de Promotores da Violência Doméstica - COPEVID, esteve reunida na cidade de Vitória-ES, sob a coordenação da promotora de Cuiabá Lindinalva Rodrigues Dalla Costa, para traçar metas de trabalho e padronização de atuação na área.

Os participantes trocaram modelos de convênios realizados com o Governo Federal (Pronasci/SPM), tendo em conta que estão abertas as inscrições de projetos para o Ministério Público na área de violência doméstica.

Foi aprovada uma campanha nacional educativa de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, que estimula as mulheres a denunciar os crimes e não desistir da busca por Justiça, que ficará a cargo da promotora Sueli Lima e Silva, do Ministério Público do Espírito Santo, que a produzirá e repassará para os demais estados.

O combate a violência doméstica tem se fortalecido após a criação da COPEVID, com o apoio importante da Presidente do GNDH, a Procuradora-Geral de Justiça Maria do Perpétuo Socorro e do Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, presidente do CNPG, Fernando Grella, que decidiu em processo relativo ao artigo 28 do CPP, que a lesão leve praticada com violência doméstica e familiar contra a mulher, é de ação pública incondicionada, tendo as promotoras Silvia Chakian de Toledo Santos e Valéria Diez Scarance Fernandes de São Paulo, informado que após a última reunião da COPEVID, realizada em abril deste ano, o MPSP firmou entendimento de que não será mais oferecida a suspensão condicional do processo, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher naquele estado. Tal entendimento foi, inclusive, objeto de recomendação da Corregedoria-Geral do MPSP, para todos os membros.

Foi aprovada a redação final da cartilha nacional da Lei Maria da Penha da COPEVID, sob a coordenação da promotora Rúbian Correa Coutinho, do MPGO, que conta com apresentação do presidente Fernando Grella Vieira.
A promotora Valeska Nedehf do Vale, do MPCE, apresentou o modelo de inspeção para os Centros de Referência do CE, que foi aprovado como modelo nacional para fins de padronização.

Lúcia Iloizio Barros Bastos, promotora do MPRJ, prestou esclarecimentos sobre a organização do II Encontro Nacional dos Ministérios Públicos dos Estados e da União sobre a Implementação da Lei Maria da Penha, a ser realizado no Rio de Janeiro, nos dias 18 e 19 de agosto.

Lindinalva Rodrigues Dalla Costa apresentou a justificativa e finalidade da CPMI da Violência Doméstica, aprovada pelo Congresso Nacional, para fins informativos.

A COPEVID estabeleceu como meta a criação em todos os Ministérios Públicos Estaduais e do Distrito Federal, de Promotorias Especializadas e Núcleos de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e a implementação do cadastro nacional dos casos de violência doméstica (artigo 26, III, da LMP).

Foi ainda estabelecido que no prazo de três meses os membros da COPEVID tomarão providências para criação em suas respectivas comarcas, dos centros de educação e reabilitação de agressores ( artigo 35, inciso V, da LMP ), incluindo a atribuição de eventual encaminhamento ao tratamento necessário de dependência química ou álcool, fator que contribui para o aumento de casos de violência doméstica.

Também foi pedido que se oficie, através do Presidente do CNPG, o CNMP, para que inclua nos relatórios estatísticos criminais, campo específico mencionando os casos de homicídios de mulheres em situação de violência doméstica e familiar, a fim de que se tenha um dado específico deste tipo de crime no país, o que não existe atualmente.

Tendo o promotor Silvio Amaral Nogueira de Lima, do MPMS, informado que a partir 30/06/2011, o cadastro nacional dos casos de violência doméstica já aprovado pelo CNPG, estará finalizado, foi solicitado que o mesmo seja no período remetido aos procuradores-gerais , para efetiva implementação nos Ministérios Públicos, em todas as comarcas, nos termos do artigo 26, III, da LMP.


Foi deliberado que as padronizações de entendimento aprovadas pela COPEVID na reunião de abril de 2011 seriam transformadas em enunciados, tendo sido aprovados, portando, os seguintes enunciados: Enunciado nº 1. Nos casos de crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher não se aplica a suspensão condicional do processo; Enunciado nº 2. Nos casos de contravenções penais praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher não se aplica a transação penal, conforme entendimento unanime do STF; Enunciado nº 3. Quanto a audiência prevista no artigo 16 da LMP, nos crimes que dependem de representação da vítima, somente deve ser designada quando a vítima procura espontaneamente o Juízo para manifestar sua desistência antes do recebimento da denúncia; Enunciado nº 4. As Medidas de Proteção foram definidas como medidas cautelares sui generis de natureza híbrida (cível e criminal), que podem ser deferidas de plano pelo Juiz, exigindo-se o boletim de ocorrência, sendo dispensável, a princípio, a instrução da medida. Quanto ao prazo de duração, a medida pode perdurar durante todo o processo criminal, inclusive durante o cumprimento da pena. Na hipótese em que a mulher não desejar representar criminalmente, a medida de proteção poderá ter a duração de até 6 meses.

A COPEVID faz parte do GNDH ( Grupo Nacional de Direitos Humanos), com objetivo de auxiliar o CNPG ( Conselho Nacional de Procuradores Gerais).Existem outras quatro comissões: COPEDPDI - Comissão Permanente de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência e Idoso; COPEDS - Comissão Permanente de Defesa da Saúde; COPEIJE - Comissão Permanente da Infância, Juventude e Educação e COPEDH - Comissão Permanente de Defesa dos Direitos Humanos ( sentido estrito) , das quais integram outros representantes do Ministério Público de Mato Grosso, assim sucessivamente: Edmilson da Costa Pereira, Alexandre de Matos Guedes, Sasenazy Soares e Rodrigo de Araújo Braga Arruda.

Diversos outros promotores da violência doméstica participaram da reunião da COPEVID representando seus estados, dentre eles: Gicele Mara Cavalcante D’Avila Fontes (MPSE), Sueli Lima e Silva (MPES),Ivana Machado Battaglin (MPRS), Daniele Martins Silva (MPDF), Genivalda de Sousa Figueiredo(MPRN), Cláudia Cristina Rodrigues Martins (MPPR), Sumaya Saady Morhy Pereira(MPPA), Alexandre Augusto Corbacho Martins (MPRO) e Sara Gama Sampaio (MPBA).



quarta-feira, 27 de abril de 2011

USO, ABUSO E DEPENDÊNCIA DE DROGAS LÍCITAS E ILÍCITAS: UM GRAVE PROBLEMA DE EDUCAÇÃO, SAÚDE E SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO - Prof. Dr. José Jackson Coelho Sampaio

Devidamente autorizada pelo Prof. Dr. José Jackson Coelho Sampaio, que gentilmente me enviou, por email, cópia da palestra por ele proferida por ocasião da abertura da Reunião do GNDH em João Pessoa, no dia 14 de abril de 2011, publico, abaixo, integralmente, a referida palestra.
Como já disse anteriormente, poucas vezes ouvi ou li palavras tão apropriadas para um tema tão desafiador.
Deleitem-se:



USO, ABUSO E DEPENDÊNCIA DE DROGAS LÍCITAS E ILÍCITAS: UM GRAVE PROBLEMA DE EDUCAÇÃO, SAÚDE E SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO.

Prof. Dr. José Jackson Coelho Sampaio



1. Três Histórias Exemplares.

O Vinho no Mundo Antigo e na Idade Média:

Nas cavernas pré-históricas, no degelo das primaveras, quanta fruta ou grão apodreceu e fermentou em pequenas poças no fundo das cavernas, mas, antes mesmo que a água fluísse pelos riachos, após serem quebradas as crostas de gelo, alguém provou o líquido das poças e, mesmo repugnando o gosto, apaziguou a sede, sentiu estranha alegria, uma tontura exaltada, luzes na escuridão, e pode ter associado a experiência com o que fora bebido.

O fenômeno e a experiência dele decorrente eram ocasionais e não necessariamente associáveis; uns não gostaram; outros gostaram, mas logo esqueceram; poucos ficaram atrás de novas provas e, obcecados, foram surpreendidos pelos predadores; além disso, por milênios, ninguém conseguiu reproduzir, artificial e sistematicamente, o fenômeno.

Nestes milênios descobriu-se a vinha, a possibilidade de plantar vinha, a técnica para tirar vinho da vinha e até São Martinho, quase 400 anos depois de Cristo, contribuiu para o processo ao perceber como a vinha melhorava depois de ser mastigada, espontaneamente podada, pelo seu burro de estimação.

Nos mosteiros e nas famílias, em fainas diárias e submissas aos caprichos de ventos, chuvas e mudanças do clima, com a técnica dos barris de uvas pisadas, produzia-se vinho para o consumo dos senhores da terra, excedente para um pequeno comércio e outro para uso do próprio produtor.

A liberdade dos nobres para ócio e hedonismo os predispunha à repetição, daí o risco de embriaguez e vício. Aos camponeses sobrava a menor quantidade, a pior qualidade e a proibição do prazer. A técnica disponível resultava em produção restrita e sem circulação significativa fora de cada gleba. O forte sistema de crenças gerava proibição e culpa lancinante pelo uso.

Entre os ricos, pela facilidade do excesso, e entre os pobres, pela sedação da vida árdua e culpada, surgem os bêbados na paisagem social da Idade Média, herdeiros de Noé, concebidos como vítimas das fraquezas morais e do assédio dos demônios, incompetentes para restringir o uso do vinho aos dias de festa e à transubstanciação das missas.

A Cachaça no Brasil Colônia:

Em cada lugar, de acordo com as disponibilidades e a abundância das fontes alimentares e energéticas, também de acordo com as tecnologias dominadas, saímos da fermentação para a destilação e das técnicas artesanais para as mecânicas, gerando cada vez mais excedentes, para o uso e as trocas comerciais, interregionais e internacionais.

No centro do capitalismo mercantil colonial, nasce o Brasil em berço de madeira e de cana de açúcar, com as potências européias brigando por posse de terra, conquista de espíritos em nome da glória de suas crenças, tinta destinada à indústria têxtil e açúcar para universalizar novo padrão de gosto.

Saiam armas da Europa para a África, onde eram vendidas em troca de escravos. Saiam escravos da África para o Brasil, onde eram vendidos em troca de açúcar. Então, saia açúcar do Brasil para a mesa européia, finalizando uma acumulação lucrativa que alimentava o hedonismo das cortes, nova escala de concentração de poder e novas armas para que a África sangrasse.

No canavial brasileiro, para o comércio rural-urbano e interregional, ficava a rapadura e a cachaça. A cachaça, fonte calórica vazia, oferecia ao homem a impressão de estar sem fome, a proteção contra o frio das madrugadas, a força para enfrentar o violento trabalho dos dias e, finalmente, o colapso noturno de um sono pesado.

A tecnologia industrial produz volumosos excedentes, que precisam ser transformados em lucro, portanto consumidos. O produto é fantástico, pois verdadeiramente multiuso - dá lucro e poder aos proprietários, e nutre, protege, fortalece e força o sono dos trabalhadores, depois do eito. Assim, cria-se uma ciranda de justificativas, de pretextos e de desculpas: beber cachaça fica sinônimo de ser adulto, de ser viril e de ter corpo fechado contra as intempéries e as doenças, pois para tudo a cachaça há de servir.

A tecnologia é industrial, a população ampliou, a circulação dos produtos tornou-se intercontinental, o consumo massificou-se para dar conta da nova escala de excedentes e os bêbados, lixos humanos, passam a ser multidão. Então o Estado, iniciando políticas sociais públicas, usa a bebedeira geral como pretexto para oferecer ou recusar direitos, ambiguamente.

O Crack das Vastas Periferias:

Quanto mais desenvolvimento político e econômico, social e técnico, mesmo numa cultura de exploração do trabalho de muitos para o usofruto de poucos, mais se necessita de tempo de estudo para o domínio das tecnologias.

Se o século XIX exigiu infância e o século XX exigiu infância e adolescência, o século XXI exigirá infância, adolescência e adulto jovem para o domínio de profissões, estratégias de autocuidado para vida longeva, estratégias sociais para o domínio da experiência humana no mundo e uma cidadania ética em meio às tensões entre prazer, riqueza e poder.

As novas e ampliadas elites exigem muito mais tempo para a formação, o trabalho e o consumo, esta dimensão produtiva que, agora, dá sentido a todo o processo produtivo (produção > distribuição > consumo) e serve de porta de entrada à cidadania contemporânea, reformulando até o papel dos excluídos.

Superando certa utopia de união dos trabalhadores, percebe-se uma reconfiguração das lutas político-econômicas na sociedade, com a aliança de patrões e empregados de um setor econômico disputando renda e poder com a mesma aliança em outro setor. Também se percebe a redistribuição global das antigas classes, agora opondo países: agrários, industriais e financeiros, centrais e periféricos – daí a concentração do comportamento elite em uns, do servil em outros e do puritano-produtivista em mais outros.

Os norte-americanos descobriram, então, depois do baby boom ao fim da 2ª guerra mundial, seus jovens, tardo-adolescentes, abastados e individualistas, consumindo a heroína, a cocaína e a maconha produzidas na periferia pouco virtuosa do mundo.

E, evidentemente, os jovens gringos não seriam responsáveis pelo próprio comportamento, nem a sociedade norte-americana, mas, sim, asiáticos e sul-americanos inescrupulosos, violadores da consciência dos meninos ingênuos. Certos de serem o novo povo eleito do destino manifesto, os Estados Unidos arregimentam vastos poderes bélicos para intervenções na Turquia, Afeganistão e Colômbia, por exemplo, obtendo nestes paises, como conseqüência, o surgimento de negócios organizados em escala global, apoiados em forças paramilitares, além de despertarem o empreendedorismo anglo-saxão para um novo cluster de negócios: as drogas sintéticas, geradas em laboratórios, frutos do trabalho de pesquisa de cientistas.

Se a humanidade gosta de droga, o comportamento hedonista se tornou massificado, a lógica do consumo foi expandida e tornou-se produtora de sentido, a competência técnica multiplica por zilhões a capacidade de produzir qualquer mercadoria, a escala de lucro tornou-se estratosférica, os novos jovens têm hábitos urbanos e afeitos a produtos industrial-sintéticos e lhes foi dito que remédios os salvam da dor, da infelicidade e da morte, então, destinam-se ao LSD da Era de Aquarius, ao ecstasy das baladas, à cocaína branca dos salões, sobrando para as periferias o barato do crack barato.

Na economia da dependência química, os empresários marginais, como máfias, dividem territórios. Assim, áreas de maior poder aquisitivo de cidades e cidades inteiras mais ricas, como São Paulo, podem ser bloqueadas para a cocaína, por exemplo, e outras regiões tornam-se pasta de crack, com seu cortejo de zumbis, pelas calçadas.

Esses marginalizados, depois de alimentarem a ciência, a indústria e o comércio das drogas, devem alimentar novo circuito de preconceitos – pois fracassados, fracos, degenerados – e o comércio milionário de um novo tipo de asilo. E todas as ações são defendidas não pelos eventuais próprios méritos, mas pelo efeito higiênico e estético de “tirarem drogados das ruas”.



2. Processo biológico-psicológico-social do uso e do abuso de drogas e da dependência química.

O uso e o abuso de drogas e a dependência química são fenômenos humanos, mutáveis com a história humana. As teorias que pretendem dar conta da compreensão desses fenômenos, tanto quanto as práticas de prevenção, de mitigação, de tratamento e de recuperação, também são mutáveis com a história humana.

A essa altura do nosso desenvolvimento, com as experiências de Neurologia, Psicopatologia, Psiquiatria, Psicologia e Psicanálise, o que podemos dizer sobre tais fenômenos, além de identificá-los como constituintes de um processo dinâmico, interdependente, radicalmente humano?

E como sempre é necessário algum passeio por palavras, expressões e o estatuto social de suas circulações. O modelo biomédico prefere usar “substância psicoativa”, incluindo no tecnoleto uma assepsia e uma impessoalidade da expressão. A palavra “droga” tem forte trajetória histórica, abarca desde o chocolate ao haxixe, e povoa o senso comum com sua carga de aversão moral. A tríade “tóxico”, “narcótico” e “entorpecente”, carregada de opróbrio, é a predileta do jornalismo policial, das delegacias de polícia e do meio jurídico. Isto é, fatual e simbolicamente, “substância”, “droga” e “tóxico” dizem coisas diferentes.

Pelos jornais, pelos dicionários e pela literatura científica também podemos rastrear “vício”, “dependência”, “adicção”. Se “vício” revoluteia por senso comum, mídia de massa, delegacias de polícia, com forte carga de rejeição e condenação moral; “dependência” é nome técnico, biomédico, restrito aos processos e efeitos biológicos da relação de usuários com objetos concretos; e “adicção” agrega estatuto filosófico e psicanalítico para designar todos os processos e efeitos psicossociais da relação de usuários com objetos concretos e simbólicos, ampliando o conceito de “dependência psicológica”.

Porém, com base em autores como Alfredo Moffatt (“Teoria Temporal do Psiquismo”), Antônio Lancetti (“Clínica Peripatética”), Claude Olievenstein (“Não Existem Drogados Felizes”), Eduardo Kalina (“Drogadicção”), Umberto Galimberti (“Os Mitos do Nosso Tempo”), disponho-me agora a identificar três dimensões da problemática que envolve o consumo de substância/droga/tóxico: a) psicodinâmica do uso, do abuso e da dependência; b) natureza e escolha do objeto; e c) consequências da exposição ao objeto.

O ser humano constitui sistema aberto, que introjeta alimentos e estímulos, elabora internamente estes alimentos e estímulos, usa alguns resultados desta elaboração para sua sobrevivência física e psicossocial, por fim despreza no meio resíduos supostamente inúteis do processo de elaboração e uso.

Esse esquema, grosso modo, dá conta da ingesta de pão, a produção de energia para o trabalho e o lançamento de dejetos em vaso sanitário, tanto quanto dá conta da acolhida infantil do amor materno, a disponibilidade para o comportamento afetivo e solidário na vida adulta e a projeção neurótica da função materna nas mulheres pelas quais um homem se apaixona.

Como é esquema e é grosso modo, não tem missão explicativa de cada caso concreto, singular, servindo apenas para afirmarmos a tese do sistema aberto - in put, through put, out put – escancarado ao mundo, carente do mundo. Somos, portanto, movidos pelo que captamos e pelo que somos expostos, querendo ou não, daí podermos usar, perdermos limites, abusar e nos tornar dependentes, biológica, psicológica ou biopsicologicamente de, literalmente, qualquer coisa.

Os gregos clássicos desenvolveram o conceito de Pharmakon, no qual toda substância é veneno e remédio, dependendo da dose e da condição do medicado. Por isso, como diz a canção popular, o que dá para rir, dá para chorar, questão só de peso e de medida, questão só de tempo e de lugar.

A Neurologia moderna nos fala dos diques de liberação e de retenção que se organizam no sistema nervoso central, provendo centros de saciedade específicos e inespecíficos. Temos sede, bebemos e paramos de beber pelo reconhecimento de que o equilíbrio hídrico foi restabelecido no organismo. Temos fome, comemos e uma sensação difusa de satisfação nos informa que a fome foi superada. E assim por diante. Sem estes dispositivos, seríamos peneira de palha, cano sem tampa, filtro inútil.

Mas, o que caracteriza esses alimentos e estímulos? Aqui nos deparamos com a dimensão da natureza do objeto e a construção histórica das escolhas. As dialéticas, aristotélica, hegeliana ou marxista, nos dizem da relação de movimento e contradição entre casualidade e necessidade. Na vida prática não ocorre o totalmente casual e o totalmente necessário, portanto, no ser humano, em quem o social submete e determina o orgânico e o orgânico submete e determina o inorgânico, não ocorrer o totalmente psicológico e o totalmente biológico.

Deste modo, o objeto (alimento, estímulo) pode ser dominantemente concreto (chocolate, cachaça, tabaco, açúcar, cocaína, cirurgias estéticas, moderadores de apetite, diazepam etc) ou dominantemente simbólico (trabalho, sexo, exercício físico, videogame, ideologia política, religião etc). Temos legião de chocólatras, alcoólatras, tabagistas, cocainômanos, workaholics, sexólatras, fanáticos religiosos e legião de novos abusos e dependências em busca de nome, rótulo, explicação ou estigma.

A partir do concreto, sobre base fisiológica, adaptações, defesas superativas e defesas frustradas são convocadas. A partir do simbólico, sobre base psicológica, depósitos de substâncias, alterações de sítios de ocupação ou metabolismos incompletos são convocados. E tudo com momentos de relação entre história individual e história coletiva que determinam as narrativas plenas de significados atribuídos às nossas experiências, por nós mesmos, por nossas famílias, pelos colegas da escola ou do trabalho, pelas autoridades, pela mídia. Tais narrativas nos conformam.

Focados nos ideais de consumo; formulando prazer, fama e juventude como ideais de ego; propondo coisas (drágeas, injeções, cirurgias, propriedades, dinheiro etc) como solução universal para desconfortos, frustrações, infelicidades, dores e o peso do inelutável passar do tempo rumo à morte; chegamos à composição de um perfeito modelo químico de vida. Para o bem ou para o mal, será na química que nos esbaldaremos. Se doril faz a dorzinha sumir, para uma dor maior ou o medo de ter dor ou o medo de ter medo, qual doril tomaremos?

Para camponeses pobres e analfabetos do altiplano boliviano, vivendo a experiência humana no trabalho árduo, de sol nascente a poente, respirando ar rarefeito de oxigênio, a folha mascada da coca disponível em abundância naquelas montanhas áridas será o lenitivo sedante. Para adolescentes ricos e escolarizados das cidades norte-americanas, vivendo a experiência humana em condições de individualismo e liberação permissiva, respirando publicidade, coca-cola e hamburgers, o sintético ecstazy em abundância será o estimulador do prazer e do jogo de alterações perceptivas.

E, num certo momento, perco o controle e deixo de ser sujeito para tornar-me coisa. Se comia, bebia ou fumava para viver, agora vivo para comer, beber ou fumar. Até perder a consciência das saciedades e, obcecado, atingir o ápice das formas de alienação: a coisa captura habilidades e sentidos humanos, o humano é tragado pela coisa, coisificando-se no pico e no pó.

Existem objetos que instauram dependência psicológica, com subsidiárias alterações fisiológicas. A saída envolve, basicamente, psicoterapia e reconstrução dos scripts, das narrativas e dos significados de vida. Existem outros objetos que instauram dependência física, com subsidiárias alterações psicológicas. A saída envolve a desintoxicação e a tolerância da dor da abstinência, diretamente, ou mediada por estratégias de redução de danos. Cada caso é um caso. Não há panacéia, ou milagre.

Nas sociedades atuais, urbanas, de massa, o abuso de drogas e a dependência química tornaram-se um emergente biopsicossocial que ultrapassa as fronteiras de renda, escolaridade, confissão religiosa, raça, credo político e classe social. A partir de narrativas e de objetos diferentes, a extensão do problema é muito grande, exigindo cuidado na elaboração da solução, para que não represente uma nova caça às bruxas, outro grande asilamento ou a metástase de gigolôs da tragédia, em meio a negócios, negociantes, moralistas e políticos populistas.

É da tradição popular a expressão “vender o peixe”. E ela tem respaldo na história dos povos que realizavam suas trocas, mas sob explicações místico-religiosas. Então os alimentos podem ser fortes ou fracos, reimosos ou não reimosos, puros ou impuros. E de qual pureza estamos falando? A sanitária, das limpezas e asseios, ou a moral, das virtudes?

Se em meio a mares salgados e pequenos rios salobras, fartava-me de peixe de escama e havia sobra para as trocas comerciais, como permitir que os povos das planícies de aluvião, pescadores de peixe de couro e criadores de porcos ocupassem meu mercado? Então peixe de escama passa a ser bom, saudável, puro, virtuoso. Peixe de couro e carne de porco passa a ser ruim, pestilencial, pecaminosa, suporte à vara dos demônios.

A cada momento histórico, em acordo com o jogo dominante dos interesses e das idéias que legitimam os interesses - expressões cambiantes e vagas e indiretas e não lineares destes jogos político-econômicos - nós criamos categorias explicativas que vão operar em vários níveis: das crenças, no quotidiano social, até as leis, passando pela mão invisível dos mercados.

Antes da identificação dos efeitos negativos, individuais e coletivos, do uso das bebidas alcoólicas - absenteísmo no trabalho, cirrose, câncer etc -, montou-se poderosa máquina de negócios, lucro, propaganda, e grande parte da população habituou-se ao uso próprio e dos outros, criando defesas contra os excessos, então o processo de produção, distribuição e consumo do álcool foi assumido socialmente como tolerável e legal, tornando-se lícito. Deste modo, a nova droga, que chega agora para a experiência humana, sem rito defensivo, sem adaptação biológica, mas garanta lucro extraordinário nos circuitos marginais da economia, torna-se ilícita.

Porém, esse também é um modelo geral. Para cada caso é preciso reconstruir a história, os efeitos no corpo e os valores atribuídos: seja a moda de absinto na França e de ópio na China, ambos no século XIX; seja o haxixe como presente da deusa Shiva, na Índia, ou ferramenta para êxtase místico dos derviches árabes, ou mediador das rebeliões homicidas dos seguidores do Velho da Montanha; seja a diamba, no século XX, consumida nas ruas e praças do Maranhão, por exemplo, nos anos 50 e 60, ou a marijuana dos hippies nos anos 60 e 70, e que não produziam a categoria social do maconheiro, ou a maconha de hoje, alterada, prensada, envolvida em químicos para iludir cães farejadores.

Desta discussão podemos deduzir que as várias drogas geram impactos pelo seu abuso, não pelo enquadramento legal, fortuito, em lícita ou ilícita. A compreensão dos processos e a formulação de saídas para os problemas devem, inclusive, questionar estes rótulos.



3. É possível uma política pública referente ao uso e ao abuso de drogas e à dependência química? Se possível, qual seria sua lógica organizacional?

Pelo que disse até agora, a determinação da escolha, a dinâmica da produção do abuso, o processo de instalação da dependência, a construção individual de defesas, a construção cultural de ritos de contenção, a acessibilidade e a disponibilidade econômica dos agentes, constituem emaranhado de extrema complexidade, com velozes deslizamentos de significados e legitimações, sobretudo em sociedade tecnológica, fundamentada no consumo.

Vejamos a situação contemporânea do Brasil, país exposto a um crescimento econômico significativo, que o coloca entre os 10 mais ricos do mundo, emplacando um milionário individual entre os 10 mais, porém incapaz de colocar uma única universidade entre as 150 melhores do mundo. Este Brasil, que nos últimos 60 anos passou de 70% rural para 70% urbano, apresenta indicadores monstruosos de iniqüidade social, miséria, desemprego, analfabetismo e degradação ambiental, mas tem os melhores textos legais de políticas de saúde, seguridade social, suporte ao trabalho e proteção ecológica.

Vivemos, realmente, grandes contradições: a experiência democrática é de apenas 46 anos (1945-1964 e 1985-2011), mas, por ser recente e truncada ao meio por uma ditadura militar, superficial e frustra, ainda não criou uma cultura democrática no Estado, na Sociedade e no Mercado; também, por fetichizar política eleitoral, criamos icônicos tsunamis de eleições a cada dois anos, mudando a configuração da hegemonia política a cada dois anos, refazendo bases legislativas de apoio ao executivo a cada dois anos, descontinuando planos e programas, sobrando pedaços de projetos no vácuo das boas intenções.

Vivemos, realmente, grandes contradições: a maioria das nossas ações é de curto prazo, sob a égide do marketing, sem fôlego no financiamento, na execução, no acompanhamento e na avaliação, mas são chamadas de políticas; e estas ações são duplicadas, em cada poder da república e em cada segmento administrativo de cada poder, mas são chamadas de integrais e intersetoriais.

O problema da dependência química, como se configura clinica e epidemiologicamente nas cidades e nos campos do Brasil – nos campos, sim, pois crescem os registros de motoqueiros, nas estradas tortuosas e secas do sertão nordestino, roubando os aposentados do FUNRURAL, para, com o resultado, adquirirem crack – constitui, simultaneamente, um problema de Saúde, de Educação, de Cultura, de Economia, de Segurança e de Polícia, exigindo, de modo radical, políticas integradas e ações cooperadas.

Porém os planos se esgotam no diagnóstico. Os projetos se esgotam na retórica da formulação e no imediatismo fácil da resposta emocional, sintonizado com o último levantamento de opinião pública e enquanto dura o interesse da mídia de massa. A ênfase também muda, dependendo do protagonismo de algum ator de ocasião. Se o protagonista é do campo da Saúde, chama-se todo o processo de compreensão e de solução para este campo, pois os demais seriam insuficientes, secundários ou incompetentes. Se o protagonista é da Educação, lá se vai o conjunto dos investimentos simbólicos, acompanhados de algum investimento financeiro, para este campo, como explicação e solução. E assim por diante.

A ciranda do desespero social, sobretudo quando atinge as classes médias urbanas, leva à ciranda dos políticos a resolverem toda e qualquer coisa com audiências públicas cenográficas, à cirando dos legisladores a formularem mais uma lei com imensa dificuldade de pegar no concreto e oferecer resultados, à ciranda dos intelectuais a formularem teorias pontuais com imensa possibilidade de apenas gerarem papers e consultorias. A ciranda dos interesses econômicos, lícitos ou ilícitos, inaugura novos objetos para a catexe dos vazios existenciais, o que leva à moda das drogas de uso, à moda de pesquisas, à moda de metáforas a ilustrarem de boas intenções os marketings institucionais e as novelas de TV. Hoje, então, neste passo, em pouco tempo, o Brasil será uma imensa Cracolândia.

As possibilidades de adicção a objetos simbólicos, e de enfrentamento dos problemas subseqüentes, resultam de vastos, genéricos e abstratos processos sociais, na fonte das características de nosso modelo civilizatório, do modo de produção das condições de existência (a forma pela qual cada sistema social se expressa para produzir e distribuir riqueza) e do modo de produção de verdades (a forma pela qual cada sistema social se expressa para produzir e distribuir saberes, ideologias, teorias filosóficas e científicas).

A educação filosófica, a pactuação de uma ética pública, a regulação do mercado por um estado democrático e o desenvolvimento de uma cultura humanística solidária parecem ser os caminhos que podem nos levar para fora da crise de valores, de relações e de papéis que vivemos.

Mas, as possibilidades de adicção a objetos concretos, e de enfrentamento dos problemas subseqüentes, resultam de processos mais identificáveis objetivamente, com recortes, diagnósticos, terapêuticas e prognósticos operacionalizáveis. Os campos da Educação, dos Formuladores de Códigos e Leis, dos Operadores de Códigos e Leis e da Saúde devem constituir uma vigorosa parceria interdependente, para a criação e a execução de uma política de Estado, não de Governo ou de Partido.

Na Educação, é preciso superar os parâmetros do Período Napoleônico, que considerava responsabilidade do Estado oferecer quatro anos de escolaridade, cujo projeto político pedagógico estabelecia o domínio mínimo das quatro operações fundamentais da Matemática e da capacidade mais simples de comunicação pela escrita e pela leitura na própria língua. Hoje, precisamos dominar os avanços da Matemática, além de compreender o que se escreve e o que se lê na própria língua, em língua de prática universal e em língua da informática. Precisa-se, portanto, de pelo menos 10 anos de escolaridade em escola tempo integral, aparelhada por esporte, arte, formação para a cidadania e a longevidade, a saúde e a qualidade de vida.

Os Formuladores de Códigos e Leis estão desafiados à humildade e à eficiência, pois os documentos não passam de intenções geradoras de ansiedade, frustração e sentimentos de impunidade, se não acompanhados de condições concretas de aplicação, se não contemplarem o complexo processo histórico daquilo que se quer prevenir/controlar/combater, se não resultarem em pactos sociais abrangentes, se não criarem uma consciência consensuada entre os operadores/aplicadores. Mais uma lei que não pega aprofunda a heteronomia social, confunde a cidadania, engendra a proliferação de oportunistas entre operadores/aplicadores e é tragada pela má consciência de quem tira vantagem da universalização das águas turvas.

Os Operadores de Códigos e Leis estão desafiados à competência técnica, à densidade humanística das atitudes e à honestidade. Pois, como enfrentar os negócios do tráfico de drogas e do tráfico de armas, seu correlato, se parte do sistema policial, por exemplo, mal formada, mal paga, apenas engrenagem de uma corrente burocrática e autoritária, se corrompe e apóia a contravenção? Como implantar uma reforma educacional, legal e sanitária se este elo se rompe, se quebra e, como metástase, se associa ao crime?

O campo da Saúde tem dupla e, muitas vezes, contraditória tarefa. A Educação, a Promoção, a Prevenção e a Vigilância, na atenção primária, vinculam-se às comunidades e às famílias, portanto, estrategicamente, à Educação, por meio de projetos coletivos, na tarefa de impedir que o dano se instale. A Assistência, ambulatorial, emergencial, urgencial e hospitalar, nas atenções secundária e terciária, vinculam-se aos indivíduos, por meio de projetos terapêuticos, para a redução de danos e o cuidado reparador. Mas as ações não são concatenadas e planejadas, pairando o imediatismo, o subdimensionamento dos serviços e a precariedade.

A título de exemplo, analisemos alguns dados de Fortaleza, uma metrópole de 2.500.000 habitantes, pelo menos 500.000 deles abaixo da linha de pobreza, apenas a metade dos domicílios ligados a sistema de esgotamento sanitário, e que se encontra em 29º lugar no ranking do IDH das 33 regiões metropolitanas brasileiras.

Fortaleza é capital de um estado que fica em 17º lugar no ranking da distribuição de matrícula no ensino superior das 27 unidades da federação, com analfabetismo por volta de 12% da população acima de 15 anos, apresentando 31 casos de mortalidade infantil por mil nascidos vivos (quase o dobro da média brasileira) e 16 mortes por causas externas a cada 100 mil habitantes, e que, em 2010, realizou apenas R$ 157,00 de transferência do erário para os cuidados do SUS, por habitante/ano.

E esta cidade não tem emergência/urgência psiquiátrica nas emergências/urgências gerais, não tem unidades de desintoxicação e de apoio à síndrome de abstinência nos hospitais gerais, não tem unidade de comando Justiça/Polícia/Saúde para o enfrentamento da relação doença/crime do usuário e para o enfrentamento do tráfico, não tem comunidades terapêuticas públicas para a reversão do quadro de dependência até que o cliente se habilite ao tratamento ambulatorial. Somente tem seis Centros de Atenção Psicossocial para álcool e outras drogas, subdimensionados em pessoal, o pessoal existente mal remunerado, inadequadamente formado e contratado por meio de vínculos provisórios – prestação de serviços, projetos de cooperativas, empresas de terceirização -, realizando milagres de boa vontade e de paixão, além de poucas comunidades terapêuticas privadas, confessionais, de natureza filantrópica, ideologicamente identificadas com o conceito do tratamento como prêmio à força de vontade do cliente, exatamente diante dos casos em que a volição foi a primeira função a transtornar-se e a adoecer.

Se eu tiver um transtorno que não afeta minha vontade, uso minha vontade como parceira dos terapeutas e dos projetos terapêuticos. Mas quando é a própria vontade que falha, desaba num vazio, paralisa diante da ambiguidade de sentidos e de significados, perde a capacidade de auto-alavancar-se? Vou ficar seis, 12, 24 meses internado para que se opere em mim a prótese de uma vontade que resista às seduções do imediato e dos fetiches, numa sociedade cheia deles, por todos os lados?

Que mídia de massa, que educação, que família, que estrutura individual de vontade, que projeto societário são esses que me colocaram de boca escancarada diante de um vazio que somente a fissura preenche? E, incapaz de se compreender e se re-estruturar, que sociedade é essa que inventa uma nova peste, uma nova lepra, uma nova loucura, e, apavorada com o que criou, quer oferecer como resposta um novo asilamento?

O Ministério Público tem papel estratégico no equacionamento desta problemática, pois se faz necessário coordenar uma política específica, interdisciplinar e intersetorial, que atente para a prevenção do tráfico, respeitando liberdade e privacidade; para a repressão do tráfico, não confundindo usuário com traficante; para a inclusão da educação em saúde e qualidade de vida como integrante de uma educação para a cidadania que habite o projeto pedagógico de todo o ensino básico; e para a implantação de uma rede articulada de cuidados – desintoxicação, contenção da abstinência, proteção comunitária e atenção psicossocial territorial – baseada em serviços públicos, tocados por trabalhadores bem formados e com vínculo estável de trabalho, rede esta bem dimensionada em relação à população.

A dependência química transforma a existência de cada ser humano que a desenvolve em uma catástrofe angustiada, em uma tragédia desesperada, em uma coisa externa ao si mesmo, que se volta contra o si mesmo e o despedaça. Mas nós todos somos responsáveis, partícipes da determinação e partícipes da solução, desafiados a salvar no outro a nossa própria condição.

Esse alinhamento crítico é minha esperança. Por isso, ainda, falo.

MUITO OBRIGADO!



domingo, 24 de abril de 2011

COPEVID - Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra Mulher do GNDH/CNPJ

Como já noticiado neste blog, nos dias 14 e 15 de abril de 2011, em João Pessoa- PB, participei pela primeira vez de uma reunião do GNDH/CNPJ - Grupo Nacional de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais.


 Durante o evento, em que participaram Promotores e Procuradores de Justiça representando a maioria dos Estados brasileiros e Distrito Federal, foram discutidos diversos temas de interesse da sociedade brasileira, os quais serão submetidos aos Procuradores-Gerais de Justiça para deliberação quanto à adoção de ações comuns em todo o território brasileiro.


Do Rio Grande do Sul participaram o coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa dos Direitos Humanos, Francesco Conti, e os promotores de Justiça Adrio Rafael Paula Gelatti, Angela Salton Rotunno, Christianne Pilla Caminha, Ivana Battaglin, Marcos Adede y Castro e Marinês Assmann. 


Como muito bem apontado pelo colega Promotor de Justiça Adrio Gelatti no seu blog "Le Parquet', comentando sobre o evento, "o Grupo Nacional de Direitos Humanos é formado por Comissões Permanentes que tratam de diversos temas de Direitos Humanos, tais como: violência doméstica contra a mulher, tortura, saúde pública, conflitos agrários, idosos e pessoas com deficiência, infância e juventude, entre outros."

A reunião, que contava com a presença de aproximadamente noventa e sete Promotores de Justiça, teve início com a apresentação de uma grupo de crianças de uma escola municipal de João Pessoa, que entoaram uma linda canção, de autoria deles,  cuja temática é o enfrentamento às drogas e à criminalidade. Foram aplaudidos de pé.


Após, o Professor Dr. José Jackson Coelho Sampaio proferiu palestra intitulada “O Ministério Público e o enfrentamento às drogas”, cuja temática havia sido escolhida anteriormente pelo GNDH  para o ano de 2011. Diante de uma platéia absolutamente maravilhada com seus ditos, o Professor discorreu sobre esse tema tão desafiador de maneira ímpar, magistral. Registro que já fiz contato por email com o mestre, solicitando cópia de sua palestra bem como autorização para publicá-la total ou parcialmente neste blog, pois tais conhecimentos merecem ser partilhados.




Professor Dr. José Jackson Coelho Sampaio

No dia 15, em plenário, as comissões apresentaram e debateram os resultados de cada equipe. Os temas serão submetidos ao CNPG para deliberação quanto à adoção de ações comuns em todo território brasileiro.


O trabalho realizado pelo COPEVID


Fui designada pelo Procurador-Geral do Estado do Rio Grande do Sul para integrar a  COPEVID - Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

A Comissão, composta por representantes do Ministério Público da maioria dos estados brasileiros, inicialmente elegeu sua Coordenadora, a Promotora de Justiça Lindinalva Rodrigues Dalla Costa (MPMT). Para a Vice-Coordenação, a Promotora Márcia Regina Ribeiro Teixeira (MPBA), e para a função de Secretária, a Promotora Lúcia Iloizio Barros Bastos (MPRJ).

Da esquerda para a direita, no centro: Márcia, Lindinalva e Lucia.
 Em seguida a Promotora de Justiça Gicele Mara C. D’ávila Fontes MP/SE apresentou uma pesquisa realizada em todos os Estados e DF, acerca da existência de Núcleos de Violência Doméstica, Promotorias de Justiça com atuação especializada na matéria, bem como convênio dos respectivos estados com o PRONASCI, tudo a fim de fomentar a criação daqueles e a realização de convênios, para uma maior efetividade da cognominada Lei Maria da Penha.

A seguir, a Promotora de Justiça Rúbian Correa Coutinho – MPGO apresentou um novo modelo de cartilha da Comissão, elaborado por ela e submetido à apreciação de todos, a qual será destinada à capacitação e à utilização de multiplicadores para as questões de violência de gênero.


Promotora de Justiça Rúbian Correa Coutinho – MPGO

Foi ainda deliberado acerca da realização do Encontro Nacional dos Ministérios Públicos dos Estados e do Distrito Federal, com enfoque político-criminal, consistente em três palestras e workshop com seis oficinas, a ser realizado no Estado do Rio de Janeiro, nos dias 18 e 19 de agosto de 2011.


O colega Silvio Amaral Nogueira de Lima – MP-MS pediu a palavra para tratar de problemas enfrentados com relação a decisões judiciais desfavoráveis à eficácia da Lei Maria da Penha, bem como acerca dos recursos interpostos. Sua têmpera e obstinação frente aos desafios que enfrenta junto à Vara onde atua são inspiradores.



Na sequência,  os promotores decidiram discutir e votar questões polêmicas relativas à violência contra a mulher, buscando a padronização de entendimento, para facilitar a aplicação da Lei Maria da Penha e oferecer maior proteção para as mulheres vitimadas.


 
A comissão decidiu que nos casos de crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher não se aplica a suspensão condicional do processo e nos de contravenções penais praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher não se aplica a transação penal, conforme confirmação recente do STF.

Quanto ao artigo 16 da Lei Maria da Penha, definiu-se que nos crimes que dependem de representação da vítima, a audiência somente deve ser designada quando a vítima procurar espontaneamente o juízo para manifestar sua desistência antes do recebimento da denúncia, em audiência especialmente designada para o ato.

A COPEVID definiu o conceito das medidas protetivas de urgência, como medidas cautelares sui generis de natureza híbrida (cível e criminal), que podem ser deferidas de plano pelo juiz, exigindo-se o boletim de ocorrência, sendo dispensável a princípio a instrução da medida.
Quanto ao prazo de duração, foi deliberado que a medida pode perdurar durante todo o processo criminal, inclusive durante o cumprimento da pena e na hipótese em que a mulher não desejar representar criminalmente, foi deliberado que a medida de proteção poderá ter a duração de até 6 meses.


Também foram elaborados modelos padronizados de fiscalização das delegacias da mulher e das Casas-Abrigo e deliberado que deverá haver plantão com Delegado de Polícia nas delegacias da mulher durante os finais de semana e feriados, conforme previsto na Norma Técnica de Padronização do Governo Federal.

A Promotora SueliLima e Silva – MP/ES – trouxe modelo de campanha no sentido de estimular a mulher a manter a representação nas hipóteses de violência doméstica e familiar contra a mulher.  O título da campanha será “Mulher, você não está sozinha!”

Sueli e eu, posando para o blog

Participaram da reunião do COPEVID os membros da comissão: Lindinalva Rodrigues Dalla Costa-MPMT (Coordenadora); Márcia Regina Ribeiro Teixeira-MPBA ( vice coordenadora); Lúcia Iloizio Barros Bastos – MPRJ (secretária); Vinicius Winter de Souza Lima-MPRJ, Adiel Silva França - MPRJ, Valeska Nedehf do Vale – MPCE; Gicele Mara Cavalcante D’Avila Fontes - MP/SE; Sueli Lima e Silva - MPES, Ivana Machado Battaglin - MPRS, Silvio Amaral Nogueira de Lima - MPMS, Silvia Chakian de Toledo Santos – MPSP, Maria Gabriela Prado Manssur – MPSP, Valéria Diez Scarone Fernandes – MPSP, Rúbian Correa Coutinho – MPGO, Daniele Martins Silva – MPDF, Márcia Haydée Porto de Carvalho – MPMA, Alessandra Moro de Carvalho – MPAP e Charles Martins – MPRO.

FONTES CONSULTADAS: